Nesta deprimente história das acusações de assédio feitas a Boaventura Sousa Santos, toda a gente se tem concentrado num detalhe: a coincidência de as três autoras do artigo se terem cruzado, no passado, em Portugal, no Centro de Estudos Sociais. Tendo em conta que o artigo, publicado numa revista científica, que acabou com décadas de silêncio não tem nomes de pessoas nem de lugares, percebe-se a razão para isso. Afinal, foi aquele detalhe curricular que permitiu deslindar o enigma da identidade dos alegados abusadores. Mas, quando pensamos melhor no assunto, a coincidência mais relevante não é essa — é exatamente a oposta. Aquilo que permitiu que as três mulheres falassem agora foi o facto de, precisamente, já não estarem em Coimbra, sendo que duas delas nem sequer trabalham em Portugal. A belga Lieselotte Viaene é professora na Universidade Carlos III, em Madrid; a norte-americana Miye Nadya Tom é professora na Universidade do Nebraska, nos Estados Unidos; e a portuguesa Catarina Laranjeiro é investigadora no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova, em Lisboa.
Quem vive em Coimbra, quem trabalha em Coimbra e quem depende de Coimbra não viu ou não quis ver, não ouviu ou não quis ouvir, não soube ou não quis saber. Os graffiti que apareciam nas paredes eram apagados com rapidez e as denúncias sussurradas eram silenciadas com a frase “Ele é brilhante, mas infelizmente tem dessas coisas”. Foi em Coimbra, podia ter sido em qualquer outra cidade portuguesa.
Basta ver que, ao longo destes anos, houve apenas uma pessoa que falou publicamente, e de forma repetida, sobre os alegados abusos de Boaventura Sousa Santos. Foi Moira Millán, que denunciou o caso num programa de rádio argentino, primeiro, e num encontro de mulheres indígenas no México, em 2022. Lá está: poucos dias depois do encontro com Boaventura Sousa Santos, Moira Millán saiu de Portugal para nunca mais voltar.
Há pouco tempo, ouvimos uma história semelhante, que não tem a ver com assédio, mas tem a ver com liberdade. Despedida de forma expedita da TAP, Christine Ourmières-Widener defendeu-se revelando o conteúdo comprometedor de emails, de reuniões e de conversas que expuseram aquilo que sempre desconfiámos sobre o funcionamento do governo português mas nunca ninguém tinha contado desta forma. Ao ouvi-la, houve um consenso: a gestora francesa estava à vontade para resistir e retaliar simplesmente porque não é portuguesa. Vinda do estrangeiro e estando de regresso ao estrangeiro, Christine Ourmières-Widener não depende de nenhuma das redes de influência e poder que comprimem a independência de quem vive e trabalha em Portugal.
Cá, como sabemos, tudo é mínimo, pequeno ou pequeníssimo. Até a liberdade.