O sistema distributivo francês foi e continua a ser um emblema de França enquanto nação. A economia francesa, por seu turno, deve muito do que é, também, à influência do que foi e é a moderna distribuição e a tradição da distribuição alimentar organizada no país e das muitas insígnias para quem o território nacional francês era curto e expandiram para outras paragens e continentes.
França mostrou ao mundo o conceito de livre serviço como o conceito de hipermercado. A moderna distribuição e muito do que hoje conhecemos em bricks and mortar teve, de facto, origem em França. E à França devemos uma expansão notável do sistema distributivo pelo mundo. E uma conquista de mercados que vão da Ásia à América do Norte e do Sul, além da Europa.
Quem não conhece a Auchan ou a Carrefour? Quem não ouviu falar da Casino ou da E. Leclerc? Quem não conhece a Intermarché ou mesmo a Système U?
Muitos anos passaram e muitas insígnias ficaram pelo caminho com a evolução, fundiram-se, compraram-se e venderam-se. Mas a génese da moderna distribuição alimentar é, honra lhe seja feita, francesa.
Do outro lado do Oceano, a Amazon comprou a Whole Foods este Verão passado. Uma cadeia alimentar americana física com pouco mais de 400 lojas e que estava em declínio.
Dizia eu, também este Verão, «que a compra da Whole Foods pela Amazon exponencia a lógica multicanal de uma forma e a um grau ainda não explorado pela Amazon; a simples hipótese de venda on-line de fast moving consumer goods alimentares, a grande escala, parece ser uma aposta que se apresenta na cabeça de muitos como de elevadíssimo risco o que, em boa verdade, não deixa de ser um quase facto – todos estão, no mínimo, de acordo quanto ao risco; facto adicional, porém, reside no reconhecimento de que a lógica multicanal trás associada a lógica da resposta física, tudo menos simples. Se combinada e cruzada pode ter benefícios até agora impensáveis.
Ao contrário, a Amazon tira proveito das múltiplas localizações físicas de lojas da Whole Foods para servir clientes Amazon (on-line) com entregas de proximidade, resolvendo alguns dos problemas de última milha em múltiplas regiões dos EUA…»
Mas a Amazon quer mais e isso mesmo era evidente aquando da compra da Whole Foods. E agora entra na equação o mercado francês, onde parece existir um evidente interesse. Voltamos, portanto, ao lado de cá do Atlântico.
Para já existem conversações confirmadas com a Casino, a Système U e a Intermarché. A tradição francesa em bricks and mortar de fast moving consumer goods é, como se referiu, enorme. Paralelamente, França tem um on-line relativamente desenvolvido e é um mercado interessante para o mix bricks & clicks (o on e off line e o multichannel). Adicionalmente, 6% dos produtos alimentares são, em França, vendidos em e-commerce.
Em boa parte um dos responsáveis pelo desenvolvimento do e-commerce em França é o sistema Drive, um sistema similar a um click and collect como o americano. A E. Leclerc, uma das boas hipóteses para a Amazon em França, vende 7% dos seus produtos via e-commerce e domina em 47% o sistema Drive. O consumidor compra on-line e passa a recolher os seus produtos em loja. É um sistema muito similar ao AmazonFresh Collect que foi lançado em 2017. E também similar a sistemas já operacionais na WalMart e na Kroger.
É previsto para o modelo Drive um crescimento de 10% ao ano nos próximos anos. Porém, até chegar a este estadio nem sempre foi evidente e sustentado esse mesmo crescimento. Uma das aprendizagens mais duras foi o facto de o cliente nem sempre preferir o ponto de venda como ponto de recolha, o que obrigou a ter um pick point a mais no sistema e na cadeia de abastecimento. E a prever o desenho de uma cadeia de abastecimento com pick points em lugares públicos e/ou a encontrar parceiros que potenciem negócio (complementares).
Por outro lado, e voltando novamente ao outro lado do Oceano, a Kantar prevê um crescimento para o mercado on-line alimentar americano de 3 vezes o valor atual nos próximos 5 anos, passando para cerca de 55.000 milhões de dólares em 2021.
Já deste lado do Atlântico, e no contexto do que tem sido referido, um dos grandes desafios para a Amazon no mercado francês parece ser precisamente aprender onde e como introduzir um pick point adicional na cadeia de abastecimento sem que isso represente um excessivo acréscimo de custos e, adicionalmente, como dominar uma cadeia de abastecimento com tipologia rural. Estes dois ensinamentos serão importantes quer para o mercado francês quer, mais ainda pela sua expressão, para o mercado norte-americano.
Com isto, a Amazon vai somando experiências, mercados e acrescentou a vertente alimentar, em que está fortemente interessada, ao seu portfólio. A Amazon está a crescer de forma absolutamente decisiva e rápida e parece não ter senão ambição. A questão a observar é como se fará o domínio dos meios, das cadeias de abastecimento e dos modelos distributivos. A Amazon, sendo certo que é um player on-line, está cada vez mais a tornar-se num player físico e a internalizar mais a mais os recursos alocados às suas supply chains. Mais, será cada vez mais um player de last mile. E tudo isto, cada vez mais, com recursos próprios. Estaremos, então, também perante uma outra mudança de paradigma? Um foi já “dobrado”: o retalhista on-line tornou-se também um retalhista físico no alimentar. O outro, o da internalização de atividades da supply chain, será também “dobrado”?
Porém, será que a Amazon tem competências suficientes – uma vez que a dimensão é inquestionável e existirão, queira-se ou não, economias de escala – para gerir por completo várias supply chains? Dos fulfilment centres aos pick points finais? Dos central warehouses às rotas para clientes Prime Now, com compras on-line e entregas em 1-2 horas?
Finalmente, e especulando como já muitos especularam, e se não for nenhuma das insígnias anteriores, francesas, o alvo da Amazon mas, antes, a igualmente francesa Carrefour? A Carrefour tem procedimentos de supply chain de certa forma estáveis e uma longa curva de aprendizagem em formatos Bricks and Mortar e um plano 2022 ambicioso em que um dos pilares assenta claramente no Omnichannel. Tem também várias operações on-line em várias geografias (e-commerce e last mile) e acaba de lançar a “first food blockchain” (blockchain onde a Amazon ainda não entrou e onde pode vir a definir e a marcar na quase totalidade o futuro).
É certo que a Carrefour é uma empresa cotada, com acionistas de referência, mas poderão existir alguns acordos e condições para algum tipo de compra parcelar? Em França, poderia ser apetecível comprar a Market (supermercados), a Express, a Bio, a Contact, a Montagne, a Proxy, a City ou a 8 à Huit, por exemplo. Este acordo seria uma novidade para muitos mas, acredito também que, para outros tantos, um susto. E para Bezos não há propriamente impossíveis. Há experimentação que conduz e ilumina o caminho e faz a inovação.
Parafraseando Jeff Bezos: “If you double the number of experiments you do per year you’re going to double your inventiveness.”
Professor Catedrático – NOVA SBE – Nova School of Business and Economics; crespo.carvalho@novasbe.pt