Pedro Adão e Silva sofre de uma condição que faz dele um protótipo quase perfeito da elite pensante que vai circulando nos corredores do PS e do PSD: não há um português comum que o conheça, nunca foi a votos, nem dentro nem fora do partido, nunca mediu verdadeiramente a popularidade das suas ideias, nunca concretizou os muitos projetos que seguramente tinha e tem para o país, mas continua a ser uma espécie de eterna promessa da política portuguesa, mimado pela bolha, acarinhado pelos pares, escutado pelos decisores, (per)seguido pelos detratores, dono e senhor de uma pegada mediática inversamente proporcional às suas proezas políticas.
O percurso político-mediático de Adão e Silva escreve-se, linhas gerais, da seguinte forma: formado pelo e docente no ISCTE, uma espécie de think tank informal do PS, delfim de Paulo Pedroso, promovido por Eduardo Ferro Rodrigues a dirigente nacional do PS, autor da moção estratégica de José Sócrates (2009), blogger quando ser blogger era uma cena, autor publicado e comentador multifacetado (política, internacional, desporto, cultura) em quase todos os projetos jornalísticos que existem ou existiram em Portugal (Diário Económico, Rádio Clube Português, Record, Sport TV, TSF, Expresso, RTP e agora Público).
À exceção da tal moção estratégica que desenhou para Sócrates, afastou-se da política ativa e do partido no fim do consulado de Ferro Rodrigues. Só trocaria o fato de comentador pelo de comentado a convite de António Costa e logo para liderar as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, com direito a generoso salário e a muita contestação política. Deixaria o lugar vago, não por se sentir acossado pelas críticas, mas para ser ministro da Cultura de Costa, de quem foi durante muito tempo conselheiro informal.
A experiência prometia. Assim que chegou ao governo, Costa quis dar todos os sinais de que poderia estar ali a next big thing do PS, juntando-o à montra de potenciais sucessores e puxando-o para o seu núcleo mais próximo, numa espécie de regresso do filho pródigo a casa. Sentindo a confiança nele depositada, Adão e Silva não fez as coisas por menos e começou a malhar em tudo o que mexia. Nos deputados (incluindo os do PS) que se andavam a comportar como “procuradores de cinema americano de série B”; no “ambiente mediático” e na “cobertura noticiosa” que fragilizavam a democracia (e, por mera coincidência, o governo de que fazia parte).
Malhou também, com alguma surpresa e profunda ironia, nos insensatos “comentadores” políticos da nossa praça, que, e obviamente ao contrário do que sempre fizera o próprio enquanto foi comentador regular ao longo de quase duas décadas, andavam sempre mergulhados na “bolha”, desligados das reais necessidades dos portugueses, indiferentes aos superiores interesses do país, “fatalistas” e “apocalípticos”. A experiência prometia mas foi curta. António Costa caiu, Pedro Adão e Silva assumiu as dores e veio falar em “golpe de Estado” perpetrado por “meios não violentos” — mas isso são outros quinhentos (em rigor, outros 75 mil euros) e não importam para o caso.
Pedro Adão e Silva despediu-se do Ministério da Cultura sem grande obra para mostrar, não por falta de vontade ou de competência, mas apenas e só porque lhe faltou tempo e sorte, naturalmente. Voltou ao comentário político em junho de 2024 com direito a última página no jornal Público (em junho de ‘23 dizia que não estava no seu “horizonte” voltar a fazê-lo nos “próximos tempos”) e este sábado deu à estampa o seu mais espetacular artigo: “E se Pedro Nuno Santos concorrer a Lisboa?”.
De forma quase comovente, Adão e Silva recorda a audácia de Jorge Sampaio, sugere que concorrer a Lisboa seria uma forma de Pedro Nuno Santos se libertar do caminho das pedras da oposição, de encontrar um palco privilegiado, de testar novas ‘geringonças’ à esquerda e de ganhar balanço para ser candidato a primeiro-ministro daqui a dois anos. Uma decisão, diz um encorajador, firme e convicto Adão e Silva, que encerraria a “dose de risco que caracteriza a personalidade do secretário-geral do PS”.
O texto, como é evidente, é uma óbvia provocação a Pedro Nuno Santos — até porque o próprio assume duas coisas: que se Pedro Nuno Santos perdesse seria corrido da liderança do PS; e que as eleições legislativas devem ser antecipadas para meados 2026, logo que o próximo Presidente da República esteja em condições de convocar eleições, o que deixaria Pedro Nuno, caso ganhasse a Câmara de Lisboa, com uns estonteantes dois a três a meses para chumbar um Orçamento e assumir a candidatura a primeiro-ministro. Para ultrapassar esse evidente imbróglio, o comentador sugere que o líder do PS arranje uma espécie de sidekick “igualmente forte” para descansar os que ficariam órfãos na cidade quando abandonasse os eleitores. Todo um programa.
Aliás, a chave para compreender o artigo de opinião de Pedro Adão e Silva está precisamente no último parágrafo. Nele, o articulista queixa-se de que começa a ser “incompreensivelmente tarde para o PS apresentar um candidato vencedor a Lisboa”, o que, acrescenta, “é imperdoável para os lisboetas”. Curiosamente (ou não), a candidata a candidata que foi posta em espera por Pedro Nuno Santos é nada mais nada menos do que Mariana Vieira da Silva, de quem Adão e Silva é amigo e colega de Faculdade, e a quem o líder do PS ainda não disse nem sim nem sopas, o que vai causando uma irritação mal disfarçada, como contava aqui o Observador, e como comprova o artigo de opinião de Adão e Silva.
Não é preciso muito para concluir o óbvio: Pedro Adão e Silva não quer que Pedro Nuno Santos seja candidato a Lisboa; Pedro Adão e Silva quer que Pedro Nuno Santos se despache a convidar Mariana Vieira da Silva para ser candidata a Lisboa ou, mais perversamente, que a deixe cair para ser responsabilizado por hipotecar o que seria (apostam alguns, desconfiam outros tantos) uma excelente e vencedora candidatura a Lisboa.
Está no seu pleno direito. Mas para dizer isto Pedro Adão e Silva escusava de escrever uma maldade destas embrulhada num cínico manifesto de apoio a Pedro Nuno Santos. Bastava dizer o seguinte: “Pedro Nuno Santos já deveria ter fechado a candidatura de Mariana Vieira da Silva e está a cometer um erro que lhe sairá caro no futuro”. Simples. Parafraseando o próprio Adão e Silva: dispensam-se comentadores que falam para a “bolha” e maquiaveis de “série B”.
Pedro Adão e Silva é mais um sintoma do momento atual que o PS atravessa do que exatamente um catalisador. E isso também é da responsabilidade de Pedro Nuno Santos. Aconteceu no CDS, quando o CDS tinha massa crítica, aconteceu no PSD durante todo o reinado de Rui Rio, e está a acontecer agora no PS: quando o cimento do poder se esgota, quando se sente que a liderança é frágil, quando se instala a perceção de que o incumbente não vai durar muito, lá vão aparecendo barões e baronetes com ideias luminosas que parecem carregadas de boas intenções mas que não são mais do que estocadas no líder em funções. O problema é que o cinismo também desgasta a democracia que Adão e Silva sempre jurou querer proteger. Se está assim tão preocupado com os lisboetas e com o PS, poderia sempre ir a votos em Lisboa. Ou ir a votos, ponto.