1 O pânico está a fazer com que os doentes fujam dos cuidados de que precisam.  Os relatos são constantes e já há contabilizações, ainda provisórias, de consultas perdidas e cirurgias não realizadas. Não acredito que todos os doentes que desapareceram dos serviços de urgência fossem só os “verdes”. Há diminuição de procura dos programas de vacinação. Quem sabe, há mais diagnósticos por fazer? Esta situação nova deve fazer-nos pensar sobre a capacidade de internamento do SNS que é insuficiente e pouco elástica. Os doentes “desapareceram”,  mas vão voltar e quase todos ao mesmo tempo.

As “novas” unidades de cuidados intensivos apenas foram roubar espaço a enfermarias de medicina interna onde, recorrentemente, se “guardam” doentes em macas depositadas em corredores. As unidades de cirurgia de ambulatório, aquelas onde a produção mais estava a aumentar, encerraram. Os programas de transplantação estão quase todos suspensos. Pararam porque as autoridades deliberaram, por falta de meios, de capacidade assistencial e, obviamente, por falta de órgãos. Mesmo que houvesse mais dadores potenciais, o que não sucedeu, na presença da pandemia e sem possibilidade de manter programas de colheitas, não pode haver transplantação de dadores cadavéricos.

A capacidade de internamento no SNS deve ser revista. Por exemplo, sempre defendi que o Hospital Curry Cabral não deve encerrar, nem mesmo quando o Hospital de Chelas for construído (alguma vez será?). A capacidade prevista para o Oriental de Lisboa será, a manter-se o desenho previsto, insuficiente para as necessidades. Revejam enquanto é tempo. Está quase tudo no limite e as pessoas não poderão continuar a adiar eternamente os cuidados de que precisam. Há mais vida para lá da COVID-19 e, não tenham dúvida, muito mais morte!

2 Ainda não se conhece o plano de recuperação de listas de espera. Já era altura de haver contabilização de atrasos, elaborar listas de doentes prioritários, ir à procura dos que estão “escondidos”, elencar as respostas existentes, medir custos acessórios com pessoal e horas de trabalho extra, coordenar nacionalmente. A senhora ministra, num assomo de honestidade que temos de aplaudir em pé, já aceitou que isto só se poderá resolver com a participação de todo o sistema de saúde. Foi pena ter sido preciso uma pandemia para que visse o óbvio. Ora, sendo assim, o sistema não público tem de saber quanto vai poder receber pelo esforço adicional. Não, não se convençam que isto se resolverá com requisições de trabalho à borla. Poderão fazê-lo, para não conseguir a produção necessária em tempo útil e depois passar uns meses em litigações judiciais. Uma coisa é clara, a altura chegou para que o Estado se comprometa a resolver as listas de espera até ao fim de 2020 e sem usar o subterfúgio manhoso dos tempos de resposta garantida.

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3 Têm surgido relatos esporádicos e isolados de abandono social e de regresso ao crime e à toxicodependência depois da libertação da prisão. Podem ser mesmo muito esporádicos e nem serem motivo de preocupação social generalizada. Como médico, um caso que seja já me inquieta. Sem querer discutir que um grande número de presos precisa mais de hospital do que de prisão (note-se que eu tenho sido muito vocal na defesa de penas muito mais elevadas para crimes de sangue e menores para crimes cuja natureza tenha uma doença na sua base), convém seguir todas estas pessoas e não deixar que a situação dos presos libertados tenha contornos de semelhança com a lei Basaglia de 1978. Fecharam os manicómios em Itália e houve doentes mentais que foram dormir para a rua.

4 Pesquisar antivírus não pode fazer com que se deixe de investigar outras doenças e tipos de fármacos, nomeadamente antibióticos. Num artigo de há uma semana, Bill Gates, sempre ele, escreveu na The Economist que a Covid-19 seria uma oportunidade para pesquisar mais antivirias, área de carência farmacológica grave, no entender o autor. Pois bem, com a humildade de uma pulga em frente a um elefante, contraponho que na área dos tratamentos virais temos tipo progressos fantásticos. Tratamos gripe, embora com dificuldades e baixa taxa de sucesso, e HIV, CMV, HBV, HCV, HSV, HZV, e ainda mais uns quantos. Desculpem a sopa de letras. Pode ser pouco se pensarmos na imensidão de vírus existentes e ainda por identificar ou para surgir como patogénicos humanos. Há vacinas para a maioria das doenças virais mais frequentes. Mas investigar antivirais, certamente necessário, não pode comprometer os esforços de investigação em antibacterianos. Não se esqueçam das epidemias de bactérias multiresistentes que aí virão e que ainda matarão muito mais do que o SARS-CoV-2. São os superbugs que andam aí, desde os mais prosaicos, como variantes de Streptococcus, Klebsiella ou Salmonella, passando por assassinos encartados como Clostridoides e Acinetobacter, até organismos de descoberta mais recente como as Elizabethkingia. No setor dos medicamentos contra bactérias não tem havido progressos verdadeiramente significativos, em especial na tuberculose, no tratamento de bactérias carbapenemo resistentes – uma verdadeira praga de elevada mortalidade – e, até no tratamento de meticilina resistentes, algumas das ferramentas novas e promissoras já estão a perder atividade. No campo dos antifúngicos está tudo, por enquanto, contente com os fármacos mais “recentes”, todos de classes com mais de 10 anos, quando já começam a surgir novas ameaças, muito “graças” ao aquecimento global como é o caso da Candida auris e os Emergomyces. Pior, a pandemia da Covid-19 tem levado ao adiamento e suspensão de recrutamento para ensaios clínicos em outras doenças, nomeadamente em oncologia, com custos que ainda não conseguimos medir.

5 Há uma claríssima perda da qualidade da informação que está a ser exigida para a aprovação de medicamentos. Passámos de claro excesso securitário para um laxismo preocupante. Sucedem-se anúncios de remédios mais ou menos milagrosos. Lembram-se da hidroxicloroquina? Era a panaceia barata. Tóxica, sem dúvida, mas valia o risco. Semanas depois, só mesmo semanas, já não era boa e, afinal, é mesmo mais tóxica do que benéfica. Passámos ao medicamento seguinte. Como médico, apesar de admirador confesso dos méritos do Dr. Fauci, foi-me penoso assistir ao papel de marketeer de remédios que este Colega nos mostrou na Sala Oval. Tudo bem, era preciso dar alguma coisa a que as pessoas se pudessem agarrar depois dos fiascos dos antimaláricos e desinfetantes na veia. Mas, com o devido respeito, assumir o papel do fabricante e divulgar resultados – por sinal muito modestos – de um medicamento americano não lhe ficou bem. Não era o local nem o contexto para o fazer e pronunciou-se sobre resultados ainda não publicados e antes da revisão por pares. O remdesivir até pode ser melhor do que até agora mostrou, o melhor de tudo o que já existe, pode vir a ser melhorado, pode ser uma base para futuras moléculas, mas convirá que, como o Dr. Fauci bem sabe, não se confunda significado estatístico com significado clínico. O cemitério da farmacologia está cheio de moléculas, tal como os cemitérios estão cheios de cadáveres a quem não deram o fármaco certo na hora certa. O problema é saber qual é esse remédio que faltou e só o tempo nos pode esclarecer daquilo que só o tempo pode ensinar.

6 Percebo que o regresso do espetáculo desportivo também faça falta. Há toda uma economia pendente. Não consigo ter pena dos jovens talentos que viram os seus salários reduzidos de 300 mil para 150 mil euros mensais. Não sou capaz de me unir à sua tristeza. O problema é que a larga maioria dos profissionais do desporto ganha para comer. Subsidie-se quem tem de ser ajudado, os pequenos clubes de que ninguém ouve falar e onde, não raras vezes, começam os talentos maiores. Mas não se esqueçam de que ainda hoje está por excluir o seeding que poderá ter acontecido nas aglomerações transfronteiriças de fãs dos grandes eventos das competições de futebol. O problema do fenómeno desportivo de massas é ser de massas. Nos estádios ainda poderiam reduzir a lotação. Optaram por não os abrir. Mas não se esqueçam de que à “porta fechada” não impede que os adeptos se concentrem em espaços fechados. Quem nunca se juntou com amigos para ver a bola? Era preciso recomeçar já com os campeonatos?

E não percebo como ainda se hesita sobre os festivais, seja lá do que forem. Aglomerações em recintos em que se amontoam pessoas, literalmente em cima uns dos outros, não será boa profilaxia da transmissão de coronavírus. Tenhamos paciência. Há um conjunto de exibições, para as quais até já tenho bilhete, que foram adiadas para 2021. Temo que possa ser cedo. Vá lá, todos sentadinhos e bem afastados, talvez seja possível. Vai ser engraçado termos ópera, rock, concertos, ballet e teatro de mascarados. No público e no palco. Já levei com muito perdigoto sentado na primeira fila. Ou então, façam como na bola e haja transmissão ao vivo que até poderá ser paga. Não será a mesma coisa, mas porque não?

7 Não, não há instrumento legal que garanta a possibilidade de obrigar a internamento compulsivo de doentes infetados ou mesmo quarentena. Repito o que já escrevi neste jornal. A minha preocupação está muito melhor descrita por Vasco Peixoto et al. (Acta Med Port 2020 Apr;33(4):225-228). A legislação existente, fora de um contexto de Estado de Emergência é insuficiente. A proposta de Lei de Saúde Pública entrou no Parlamento 2017, foi aprovada na generalidade e nunca chegou a ser aprovada na especialidade, tendo ficado esquecida na comissão de saúde. Com o termo da legislatura a iniciativa caducou. Esta iniciativa previa explicitamente o afastamento temporário de doentes, ainda que sem poder prever internamentos compulsivos. A Lei de Bases da Saúde é omissa quanto à possibilidade de impor internamentos ou quarentenas. A Lei n.º 81/2009 de 21 de agosto, ainda em vigor, prevê “separação de pessoas que não estejam doentes, meios de transporte ou mercadorias, que tenham sido expostos, de forma a evitar a eventual disseminação da infeção ou contaminação” e nada mais. Os instrumentos legais em vigor não preveem a possibilidade de internamento ou confinamento domiciliário obrigatório, sendo até difícil justificar, sob a figura de crime de propagação de doença infeciosa, qualquer tipo de medida punitiva que não seja transitada em julgado. Vamos ter tribunais sumários para a COVID-19? Desde já agradeço aos juristas, havendo algum que tenha paciência para me ler, que se pronuncie sobre este assunto. Eu tenho defendido que o direito à proteção da saúde, constitucionalmente consagrado, pode sobrepor-se ao de liberdade individual. Esta questão da hierarquia de direitos é complexa e é alvo de discussão desde há anos. Note-se que a saúde não é um direito consagrado como tal. Logo, na minha opinião de leigo, a consagração do direito à proteção da saúde da CRP poderia permitir uma lei de quarentena nos moldes da de saúde mental. Todavia, há quem leia a Constituição de uma forma mais literal e, na verdade, a privação de liberdade por motivos de saúde só está explicitamente prevista em situações de doença mental. Em última análise, se tiver que ser, reveja-se um artigo da Constituição. Não será motivo, imagino, para grande combate político.