Em 2019, como resultado das eleições legislativas, a pluralidade do parlamento português alargou-se para uns inauditos dez partidos políticos. Isto diversificou muito as opções dos portugueses o que, em si, é uma excelente notícia para um país com dificuldades de afirmação nas últimas duas décadas e que necessita urgentemente de uma nova visão para áreas tão importantes como a economia, a justiça, a educação ou a saúde. Grande parte destes partidos representam diferentes visões da sociedade e soluções para o país. Temos de tudo um pouco, desde os negacionistas do Holodomor e do Gulag, até saudosistas do Estado Novo, incluindo todas as grandes tendências políticas europeias, como os neocomunistas, sociais-democratas, democratas cristãos, verdes e liberais.

Sendo a maior parte dos pequenos e médios partidos relativamente claros nas suas convicções e discurso, o voto nestes é igualmente transparente: quem deseja um Portugal mais parecido com a União Soviética sabe bem em quem votar, assim como alguém que olhe para a Hungria e a Turquia com uma pontinha de inveja também não terá dúvidas. E o mesmo poderá ser dito de quem deseje que Portugal siga o caminho da Irlanda ou dos Países Baixos.

Curiosamente, e já que estes serão com toda a certeza os partidos mais votados, é hoje (para mim) muito mais difícil de compreender o voto nos dois grandes partidos de poder. Muitos são os que votam por hábito, uma espécie de apoio clubista em tudo semelhante ao que vemos no futebol. Não haverá muito a fazer e é um voto tão legítimo quanto o do mais erudito e visionário dos eleitores. Todavia quero acreditar que a esmagadora maioria dos meus compatriotas são mais sofisticados do que isso.

O voto no PSD é um voto de confiança no regime. É o apoio de quem pouco quer mudar para que tudo fique na mesma. Tem certamente a vantagem de forçar o desmantelamento e reinício das teias de corrupção e nepotismo que inevitavelmente vão crescendo e fortalecendo quanto mais são os anos no poder. No entanto, no essencial, este PSD de Rui Rio não parece muito diferente do PS de António Costa, por isso será também um voto na continuidade das políticas que pouco têm feito pelo país e que ano após ano nos vão conduzindo para a cauda da Europa.

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Mas olhemos para o Partido Socialista e o seu eleitorado com mais detalhe. Naturalmente que uma parte dos seus votos estarão garantidos à partida. São muitos aqueles cujo emprego depende directamente de gentilezas e favores políticos, de empresas que vivem à sombra do estado e de clientelas que sobrevivem apenas de transferências directas dos partidos que controlam o poder central e local. Mas mesmo colocando todos estes de lado, existirão certamente centenas de milhares de eleitores que votam honestamente nestes partidos de poder na esperança de um país melhor.

O voto honesto e convicto no PS é o que me causa mais perplexidade. Quem a 30 de janeiro votar no PS estará a passar um cheque em branco como provavelmente nunca antes fez. António Costa tanto poderá ter como vice-primeiro ministro Jerónimo de Sousa, como Catarina Martins ou Rui Rio. Há muito que António Costa nos ensinou que a sua carreira política está acima de qualquer outro interesse seja ele partidário ou nacional. Tudo o que antes disse pode ser desdito e não duvido que terá uma legião de comentadores prontos a defenderem tudo e o seu contrário.

Este potencial governo, tanto poderá ter como ministro das finanças Joaquim Miranda Sarmento (o “Centeno” de Rui Rio), como João Leão (que Pedro Nuno Santos acusa de ser responsável pelo estado da CP) ou até Mariana Mortágua (que se orgulha de baptizar impostos e taxas). Esse voto tanto pode dar uma maioria absoluta a António Costa, que governará a seu bel-prazer no que provavelmente será o mais anti-reformista dos governos pós 25 de Abril, como pode atirá-lo para os braços da extrema-esquerda, do PAN, do PSD ou de quem quer que lhe permita manter o lugar. Conhecendo nós as ambições europeias de António Costa, não sabemos sequer se pretende ficar no lugar até ao fim da legislatura ou se já se prepara para dar o salto como tão celebremente fez o desprestigiado Durão Barroso. Aí, o poder será entregue a um qualquer número dois que lhe agrade, tal como fez em Lisboa, circunstância que os lisboetas, entretanto, já consertaram.

No limite, e já que não existe nenhum motivo especial para António Costa conseguir chegar a acordo com o PCP e o BE que tão recentemente falhou, o voto socialista pode estar a ir não para António Costa, mas para o seu mais que provável e indesejado sucessor, Pedro Nuno Santos, que certamente tentará aliar-se à sua esquerda para garantir o mais sinistro governo desde o 25 de novembro. Caro leitor, se é um dos muitos que honestamente e sem qualquer interesse obscuro pretende votar socialista, deve perguntar-se o que será feito com o cheque em branco que se prepara para lhes passar. E deveria exigir que António Costa e o Partido Socialista lhe dissessem exactamente o que estarão dispostos a fazer – e com quem – depois das eleições legislativas de 2022.