O texto que gostaria de ter escrito sobre o tema da semana, a já famosa “lista VIP” de contribuintes da máquina fiscal, foi escrito (e muito melhor) por Helena Matos e publicado ontem aqui no Observador.
O assunto é dado a grande demagogia e a forma desastrada, hesitante e contraditória como o Governo a ele reagiu só contribuiu para fazer a polémica avançar como fogo em palha.
O ponto alto da demagogia está ligado à acusação de desigualdade já tratada por Helena Matos. Sustenta muita gente que a “lista VIP” se destina, tão só, a criar uma casta que fica ao abrigo do devido escrutínio do cumprimento das obrigações fiscais.
Este argumento é o grande logro da questão. Repare-se que até este momento ninguém disse – nem mesmo o sindicato, que aqui aparece numa posição essencialmente de defesa da classe – que ficou alguma investigação fiscal, legítima, por fazer a um desses VIP por receio de represálias ou por indicação superior. Isso seria verdadeiramente inaceitável e, aí sim, motivo de toda a indignação e a exigir demissões imediatas a quem tivesse travado essas inspecções fiscais, no governo ou na administração tributária.
O que está em causa é a consulta de dados fiscais por parte de funcionários à margem de qualquer tarefa legítima, por mera curiosidade, por puro vouyerismo ou, pior do isso, para os passarem para o exterior da Administração Tributária. Isso é patente na gravação divulgada pela revista Visão da acção de formação do chefe de divisão dos serviços de auditoria da AT, Vítor Lourenço, quando deu o exemplo de uma funcionária que terá consultado os dados de Cavaco Silva apenas para saber quanto ganhava o Presidente da República. E foi também referido pelo subdiretor-geral da Justiça Tributária e Aduaneira demissionário, José Maria Pires, no email que enviou aos funcionários do fisco, quando falou da “constatação de um aumento significativo de consultas a dados fiscais sigilosos de contribuintes e de violação do direito ao sigilo fiscal”.
É deste escrutínio que estamos a falar? É uma verificação do cumprimento das obrigações tributárias feita desta forma que queremos para os VIP ou para os não VIP?
Mal de nós se o escrutínio fiscal dos contribuintes – dos ricos e poderosos que alegadamente constam dessa lista informal a qualquer outro cidadão anónimo – partir de uma qualquer motivação momentânea de um qualquer funcionário que hoje se lembra de ver como param as contas de um ministro, amanhã de um deputado da oposição e no dia seguinte do mal encarado vizinho da frente, à margem de qualquer procedimento formal e devidamente justificado.
Esta polémica teve, para já, a grande vantagem de nos mostrar que não há controlo no acesso aos nossos dados fiscais por parte dos cerca de 9.000 funcionários da Autoridade Tributária. E isso é assustador num país onde o sigilo fiscal faz parte da ordem jurídica.
Com as coisas a funcionarem desta forma o risco de violação de dados pessoais é real para qualquer cidadão? É verdade. A protecção desses dados e as regras de acesso devem ser iguais para todos? Certo.
Mas aparentemente o Estado não está em condições de proteger os dados pessoais que nos exige e que guarda para si em gigantescas bases de dados. Não sendo possível, de forma imediata, criar mecanismos de alerta que previnam o acesso indevido aos dados de cada um dos milhões de contribuintes, não vejo que não se possa começar por algum lado. E um critério que parece sensato é o da criação de um grupo que, por razões óbvias, pode despertar maior curisidade imprópria: figuras públicas ou, se quisermos, VIP.
A existir, essa medida nunca devia resultar de uma medida “ad hoc” da máquina fiscal mas sim de um procedimento legal que fixasse devidamente as suas regras e um calendário para a implementação de igual protecção para todos os contribuintes. E, obviamente, qualquer lista de “privilegiados” com os dados fiscais mais protegidos deve partir de critérios minimamente objectivos em função do risco de devassa.
Não sei se a “lista VIP” de que se fala foi feita desta forma. Não sabemos se dela só constam políticos e, dentro destes, se são todos do mesmo quadrante ideológico. Se assim é, é totalmente inaceitável. Se é diversificada, se dela constam figuras públicas como actores, desportistas, empresários e outras figuras públicas que naturalmente despertam uma curiosidade que pode premiar o tráfico de dados pessoais, ela pode ser o início legítimo de um processo que tem de alargar-se a todos os contribuintes.
Uma coisa é certa: num Estado de Direito o escrutínio do que quer que seja não pode assentar na possibilidade de devassa de dados pessoais que estão à mercê de qualquer funcionário à margem de um procedimento formal e devidamente justificado.
Confundir escrutínio com devassa é não perceber bem o que distingue uma democracia de métodos próprios de ditaduras.
Podemos discutir se o fim do sigilo fiscal é uma medida acertada para o combate à fuga aos impostos e também como método de escrutínio dos decisores públicos – que, aliás, são já obrigados a tornar públicas declarações de rendimentos e de património. Há democracias recomendáveis no Norte da Europa que praticam esse regime. Se assim for, que se tornem os dados fiscais de cada um acessíveis a todos. Mas depois de aprovada uma lei e de serem definidos os critérios para a sua aplicação.
Coisa diferente é a devassa aleatória, à margem das leis. Isso não, obrigado.
Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com