Eu sei que, para sermos uns democratas bem-comportados, devemos dizer todos o contrário daquilo que vou escrever nesta coluna. Eu sei que, para não parecermos provincianos, devemos todos jurar, enquanto nos benzemos, que as próximas eleições são sobre o programa Next Generation EU, sobre o European Green Deal e sobre os detalhes regimentais do Berlaymont.
Acontece, porém, que não são. Não me entendam mal: tenho todo o entusiasmo pelos detalhes regimentais do Berlaymont, acordo todos os dias em ânsias pelo European Green Deal e passo todos os meus dias em palpitações pelo Next Generation EU. Mas, lamentavelmente, como dizia alguém, as coisas são o que são. E, neste momento, em Portugal, são assim: de cada vez que um eleitor sai de casa, coça o nariz ou come um pastel de bacalhau, isso é imediatamente analisado pelos partidos à procura de sinais de apoio ao governo ou de reprovação do governo.
Vejam o caso do desfile do 25 de Abril. Este ano, por causa do simbolismo do cinquentenário, estiveram na Avenida da Liberdade eleitores de esquerda, de centro e de direita; apareceram dirigentes do PCP, do BE, do PS, do PSD e da IL; surgiram pessoas que vivem obcecadas por política e pessoas que seriam incapazes de reconhecer mais do que três ministros deste governo. Mas, no final do dia, mesmo com toda essa variedade, Pedro Nuno Santos decidiu, de forma unilateral, que o facto de haver milhares de pessoas na rua era “um sinal de que o povo português quer a esquerda a governar”. Pelos vistos, Carlos Moedas, que estava no desfile, “quer a esquerda a governar”; José Pedro Aguiar Branco, que estava no desfile, “quer a esquerda a governar”; e Rui Rocha, que também estava no desfile, “quer a esquerda a governar”.
Se Pedro Nuno Santos transformou a participação no desfile do 25 de Abril numa moção de confiança ao PS, nas próximas europeias transformará qualquer voto num partido que não seja a AD numa moção de censura ao governo. Por isso, os eleitores devem ter consciência do que está em causa no dia 9: se o PS ficar em primeiro lugar, o governo cai; se a AD ficar em primeiro lugar, o governo ganha algumas hipóteses de sobreviver.
O líder do PS foi candidamente transparente. No lançamento do manifesto europeu dos socialistas, Pedro Nuno Santos avisou: “Vamos ganhar as europeias para logo a seguir ganharmos Portugal”. E, depois de ter declarado as suas intenções de forma inequívoca, avançou para a campanha com a mesma voracidade que mostraria se fosse ele próprio o cabeça de lista — que, na realidade, é.
Desde as últimas legislativas, o PS está sempre a lembrar ao país a fragilidade deste governo. A AD teve apenas mais 54.544 votos do que o PS, uma diferença de 0.8%. Mais: desagregando a coligação, coisa que Pedro Nuno Santos se apressou a fazer, sobra que o PSD teve o mesmíssimo número de deputados do que o PS: 78. Por tudo isto, os socialistas decretaram imediatamente que o partido vencedor não consegue mobilizar uma maioria estável e eficaz no Parlamento e que, por isso, a pátria se encontra num pântano.
Como se sabe, o PS percebe de pântanos. Em 2001, depois de umas eleições autárquicas em que os socialistas foram flagrantemente derrotados, o então primeiro-ministro António Guterres anunciou, com solenidade, que se demitia. Falando no Largo do Rato com Almeida Santos, Jorge Coelho, Ferro Rodrigues e António Vitorino ao lado, declarou, de forma pomposa: “Com inteira lucidez, devo reconhecer que, se olhasse para estas eleições e passasse por elas continuando a exercer as funções de primeiro-ministro, o país cairia inevitavelmente num pântano político”. Nesse dia, os portugueses deitaram-se a achar que tinham votado para eleger os presidentes da câmara de Lisboa, do Porto e de Alijó e acordaram a perceber que, afinal, tinham votado para eleger — ou, no caso, para destituir — o primeiro-ministro.
Na altura, muita gente ficou surpreendida com a inesperada queda do governo. Por isso, convém que a surpresa não se repita. É mais prudente esclarecer já as massas sobre aquilo que estará em causa quando forem votar. Por isso, tomem nota: estas eleições não são europeias; e também não são uma inocente segunda volta das últimas legislativas — são a primeira volta das próximas.