Pudemos ler no semanário Expresso do dia 6 de Abril um interessante artigo de Miguel Sousa Tavares, onde este, desde logo, vaticina o suicídio da Europa – coisa que hoje em dia se apregoa mensalmente em qualquer extremo do espectro político por tudo e um par de botas – e, onde este faz uma verosímil análise da visita de Macron e Von der Leyen a Pequim.

A certo ponto, a meio do artigo, este indaga-se acerca deste sonho utópico que nós ocidentais temos de querer ocidentalizar o mundo inteiro, no fundo, de querer que todos os países sejam democracias, tenham separação de poderes, tenham liberdade de opinião, tenham parlamentos, eleições livres, economias de mercado, respeito pelas minorias, respeito pelos direitos humanos, respeito pelo direito internacional, entre outras particularidades. Este, chega mesmo a perguntar: “Porquê esta súbita mentalidade do pensamento único, esta cruzada moderna contra os hereges da ordem liberal, esta necessidade urgente de exportarmos a nossa noção de bem e de valores para o mundo inteiro, e à força se necessário, antes de tudo o resto (…)”. No fundo a questão é: porque insistimos em tentar “civilizar” Estados que oprimem o seu povo, seja através de perseguição, prisão arbitrária, tortura ou assassinato por via de chá de polónio? Porque é que nós, que não temos nada a ver com esses desgraçados, insistimos em tentar fazer com que os seus países sejam lugares mais humanos e mais civilizados para com os seus cidadãos?

Existe de facto esta dita cruzada por parte do Ocidente, mas, ao contrário do que afirma Miguel Sousa Tavares, esta cruzada é tudo menos moderna e esta mentalidade é tudo menos súbita. Este chega a comparar os tempos de hoje com os tempos de guerra fria, onde induz a ideia de que nada disto existia nessa época, o que não corresponde aos factos. Nessa época, precisamente, era quando ambos os blocos (democrático vs autoritário) mais se tentaram subjugar um ao outro, todavia, essa subjugação não existiu entre 1945 e 1991 por via de um puro empate de poderes geopolíticos, porque o objectivo de ambos os blocos era justamente impor o seu modo de vida e de sociedade ao outro.

Esta dita cruzada, tanto não é nova que a podemos remontar até ao berço da nossa civilização ocidental, à guerra greco-persa, que uniu todas as cidades Estado gregas – que, até aí, viviam em constante estado de conflito entre si – para lutarem pela sua liberdade contra a dita tirania dos Persas, que culminou na vitória grega, gerou uma era de prosperidade económica e intelectual, que, 100 anos mais tarde, por acaso, esculpiu a forma de pensar do príncipe herdeiro da Macedónia, que foi discípulo de Aristóteles, e que, aquando da morte do seu pai, se torna rei, regressa à Macedónia e dá início a um período de expansão territorial pela Ásia Menor, Médio Oriente e parte da Ásia Central, disseminando as ideias gregas de liberdade, que absorveu da escola de Atenas, por um território vastíssimo que era, até aí, dominado por ditos déspotas e tiranos opressores dos seus povos, tornando-se assim famoso pelo nome de Alexandre o Grande.

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É aqui que provavelmente nasce a ideia daquilo que conhecemos como “o Ocidente”, terra da tolerância e da liberdade, que se opõe “ao Oriente”, terra da tirania e da opressão. Para Alexandre, as suas ideias de tolerância, liberdade e justiça, absorvidas dos ensinamentos de Aristóteles, eram universais, e todas as criaturas tinham direito a viver debaixo delas, nascendo aqui o embrião do nosso universalismo. Para Alexandre, só a expansão destas ideias fazia sentido, fez dessa crença o seu projecto de vida até ao dia da sua morte.

Cai o homem, cai o império helenístico, mas não caíram as ideias, a matriz universalista de Alexandre inspirou desde cedo, o império que se lhe viria a suceder, Roma, que, de uma pequena cidade na península itálica, se tornou num dos maiores impérios da história, inspirado pelas conquistas de Alexandre e a expansão das ideias gregas de sociedade, e que, através dessa mesma inspiração, expandiu as suas próprias ideias de sociedade, que eram contraditórias às dos seus opositores geopolíticos, as tribos bárbaras, em grande medida.

Cai o império romano, porém não se apaga o universalismo de Alexandre. É a Cristandade que se encarrega de consolidar as suas ideias, e de as difundir num período pós romano. Essas ideias universalistas de expansão dos valores são tão somente aquilo que a igreja denomina como o “espalhar da palavra”, que determinou séculos de guerras e cruzadas contra o Oriente muçulmano, que representava o antagonismo face às ideias ocidentais de sociedade, tal como determinou e fundamentou grande parte da expansão dos impérios marítimos, cuja presença cristã ainda hoje se faz notar no Novo Mundo, sendo este totalmente cristão, e não muçulmano ou budista. E mesmo após a perda de preponderância da Cristandade Católica, os impérios euro-mundistas sempre se encarregaram de carregar o testemunho do universalismo ocidental, o qual foi orgulhosamente envergado para pôr fim aos devaneios germânicos em ambas as guerras mundiais, e para conter a progressão do comunismo autoritário soviético durante a guerra fria.

No fundo, este universalismo que nos corre no sangue faz parte de ser ocidental, onde existe uma ideia de sociedade assente naquilo que historicamente nós próprios consideramos serem os valores pelos quais qualquer ser humano merece viver, numa sociedade justa, próspera e livre, que tem a coragem de sair em defesa dos mais fracos e libertá-los dos seus opressores e que, mais que tudo, é poderosa e corajosa o suficiente para se saber proteger das forças que a desejam reprimir e derrubar. O autoritarismo, em todas as suas formas e geografias, sempre tencionou derrubar os nossos sistemas democráticos, minar e deturpar os nossos valores, virar povos livres uns contra os outros, fomentar descrédito e discórdia que gerem instabilidade nas nossas ruas, e continua a fazê-lo sem pejo nem contemplações. Assim é hoje, e assim o era no tempo de Alexandre. Quantos mais povos aderirem à nossa causa, mais protegida ela estará, e quantos mais povos existam, que a ela desejem juntar-se, terão sempre de dispor do nosso amparo, sejam eles ucranianos, sejam eles taiwaneses, sejam eles portugueses.

Este conflito é, e sempre será, eterno, e a única forma de o combater e assegurar as nossas liberdades e o nosso modo de vida confortável, será sempre o mesmo. Resistir e combater.

Porque relativizar a tirania, nunca fez desta, menos tirana.