A chegada de Donald Trump à Casa Branca marcou um ponto de inflexão importante na estratégia da política externa dos Estados Unidos, em particular nas relações com a China. Depois de quatro décadas de aproximação política e económica, num percurso que começou a ser moldado com a viagem de Henry Kissinger e do Presidente Nixon a Pequim, em 1972, os últimos quatro anos quase que se reduzem a um período de degradação contínua das relações entre as duas grandes potências deste século. A retórica política endureceu, teve início uma guerra comercial, que mistura considerações sobre a nova geografia do voto nos Estados Unidos e questões económicas com cálculos de geopolítica e segurança nacional, e o mundo viu-se engolido por uma pandemia com origem em Wuhan.
Para além do zelo autoritário com que os oficiais chineses tentaram ocultar os primeiros casos de Covid-19 e dos subterfúgios a que continuam a recorrer para impedir a realização de qualquer investigação minimamente credível às origens do vírus, os últimos quatro anos ficam igualmente manchados pelo desmantelamento da autonomia política e regime de liberdades civis de Hong Kong. Em 2020 foi aprovada uma Lei de Segurança Nacional com uma formulação vaga o suficiente para que qualquer tipo de crítica ao governo chinês possa ser interpretada como um ato de subversão política, terrorismo ou conluio com “forças estrangeiras”. Este ano foram aprovadas reformas eleitorais com o objetivo nobilíssimo de “aperfeiçoar o sistema democrático” de Hong Kong. Naturalmente, o apregoado aperfeiçoamento consiste no reforço da influência política do Partido Comunista Chinês (PCC) através da criação de um sistema de filtragem dos candidatos que se podem apresentar a eleições. O principal critério de seleção é o fervor patriótico dos putativos candidatos. Se dúvidas ainda restassem, parece hoje evidente que a fórmula administrativa “um país, dois sistemas”, prevista na Declaração Conjunta Sino-Britânica de 1984, se transformou num mero artefacto histórico sem valor prático para Pequim.
Paralelamente ao processo de absorção política de Hong Kong, voltaram a ganhar projeção mediática temas como as violações de direitos humanos cometidas pelo governo chinês, onde se incluem, entre outras, o tratamento da minoria uigure na região autónoma de Xinjinag, o crescimento da assertividade militar nos Mares Oriental e do Sul da China e o tratamento diplomático agressivo e punitivo imposto a países que não se comportam conforme a cartilha de conduta estabelecida por Pequim. Sobre este último ponto, o azedar das relações diplomáticas entre a China e a Austrália oferece um guião fidedigno daquilo que poderá vir a ser uma ordem internacional ou regime de esferas de influência onde uma das partes é dominada pela China. Dito de outra forma, o PCC está focado na tarefa de recuperar o antigo sistema tributário, modernizá-lo e punir aqueles que se recusem a fazer kowtow ao imperador que, na versão moderna do sistema, dá pelo nome de Xi Jinping.
Em grande medida, a evolução da postura internacional de Pequim e do comportamento dos dirigentes chineses resulta da leitura que fazem do momento histórico atual. O regresso da China enquanto grande potência, alicerçado no controlo total do poder político, da economia e sociedade pelo PCC, forçou a elite política resguardada nos corredores do poder em Zhongnanhai a dar um salto estratégico importante. Se entre 1980 e 2008-09 as elites políticas chinesas seguiram o rumo estratégico apontado por Deng Xiaoping na célebre expressão “hide your light and bide your time”, que aconselhava pragmatismo estratégico em função do reconhecimento das limitações do poder latente do Estado e debilidades da economia, hoje, essa mesma elite não tem pudores em reproduzir o mantra de que “o Oriente está em ascensão e o Ocidente em declínio”.
A imagem do declínio do Ocidente começou a ganhar forma no espírito da oficialidade comunista na sequência da hecatombe da crise financeira de 2008-09. Depois de anos a serem martelados pelas elites políticas e financeiras da Europa e Estados Unidos sobre a necessidade de implementação de reformas estruturais para a liberalização do mercado de capitais e de reformas do sistema bancário, eis que em Fevereiro de 2009, com a economia americana em plena recessão e o desemprego a subir em flecha, a Secretária de Estado Hillary Clinton aterrava em Pequim para pedir ao governo chinês que continuasse a comprar dívida pública americana. A ironia histórica deste episódio, que pode ter passado despercebida em Washington, foi devidamente registada pelos membros do Politburo que viram na crise financeira o momento ideal para investir na expansão do poder e influência de Pequim no plano internacional. Outra nota interessante foi o facto de, tanto em 2009 como em Maio de 2000, altura em que o Congresso norte-americano aprovou por margem assaz significativa a normalização das relações comerciais com a China, já na reta final do segundo mandato de Bill Clinton, toda a retórica em torno dos direitos humanos ter sido metida na gaveta.
À perceção de declínio económico do Ocidente, a que se contrapõem décadas de crescimento económico avassalador na China, a elite do PCC olha agora para o confrangedor espetáculo em que a democracia americana se transformou e conclui que esse declínio é, também ele, político, normativo e cultural. Para um partido que venera a estabilidade política e apresenta uma estrutura orgânica decalcada da conceção leninista da organização do Estado, o momento atual de instabilidade política das democracias Ocidentais reforça duas ideias importantes.
Por um lado, a ideia de que o autoritarismo tecnológico do PCC, que impõe um controlo orwelliano sobre a sociedade, é um modelo superior de organização do sistema político. Um modelo que submete o cidadão ao despotismo (esclarecido?) do Estado e que, por essa via, não só garante a centralização do poder nas mãos do PCC, como facilita a implementação dos respetivos objetivos estratégicos. Sejam eles a repressão de dissidentes políticos (em território continental ou Hong Kong), a imposição de confinamentos draconianos para suprimir infeções de Covid-19, ou a expropriação de terras para a construção de uma linha ferroviária de alta velocidade ou parque industrial.
Por outro lado, a tensão permanente que caracteriza os regimes demoliberais ocidentais confirma o receio paranóico que a elite política chinesa tem de uma eventual liberalização política do regime. O mesmo se poderá dizer de uma liberalização demasiado acelerada da economia. Não é por acaso que, no final do ano passado, os reguladores chineses foram rápidos a impedir as listagens do Ant Group, uma empresa de fintech fundada por Jack Ma, nas bolsas de Hong Kong e Xangai. A lógica do partido é circular: tudo o que possa vir a colocar em causa o poder ou a legitimidade política do PCC, enquanto a única instituição capaz de gerar desenvolvimento económico e garantir a unidade territorial do país, tem de ser controlado ou, na pior das hipóteses, liquidado. Estes princípios de controlo férreo do poder têm sido amplamente reforçados no consulado político de Xi Jinping. Desde a campanha contra a corrupção, que encontra inspiração nas purgas políticas de Estaline, eliminação do número máximo de dois mandatos para o posto de presidente até ao lançamento da nova estratégia económica de “circulação dual”, as principais reformas de Xi Jinping confluem no sentido de reforçar o poder do partido, diminuir liberdades individuais e dotar a China de capacidade militar e autonomia económica para cimentar a sua posição enquanto potência dominante no Pacífico e massa continental euroasiática.
Aqui chegados, é impossível ignorar a complacência política e diplomática com que a União Europeia (desde logo expectável), mas sobretudo os Estados Unidos, lidaram e facilitaram o processo de ascensão da China. Por que razão foi preciso esperar por Donald Trump na Casa Branca para observarmos uma mudança de postura efetiva, com medidas visíveis, na estratégia de política externa com a China? Como foi possível que, depois do massacre de Tiananmen em 1989, no espaço de dez anos, cuja grande parte coincide com a presidência de Bill Clinton, se tivesse preparado o terreno para a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, que acabaria por se concretizar em Dezembro de 2001? Todos os problemas que hoje são apontados às práticas comerciais da China, desde espionagem industrial e transferência forçada de tecnologia à atribuição de subsídios a empresas estatais, que provocam distorções brutais nos mercados internacionais, falta de reciprocidade na abertura do mercado doméstico a empresas estrangeiras e opacidade do sistema regulatório, são exatamente os mesmos de há 30 anos atrás.
Neste contexto, seria útil refletir sobre a forma como figuras como a senadora democrata Dianne Feinstein, que enquanto mayor de São Francisco desenvolveu relações de grande cumplicidade política e económica com altos quadros do regime chinês, incluindo Jiang Zemin, foram capazes de persuadir os membros do Congresso americano a votar o fim do processo de renovação anual do estatuto de nação mais favorecida atribuído à China. A renovação do estatuto estava indexada a uma avaliação do comportamento da China em matéria de direitos humanos. Embora esquecida nos dias de hoje, esta decisão revelou-se um erro estratégico grave, na medida em que reduziu de modo drástico a capacidade dos Estados Unidos em impor reformas mais profundas ao governo chinês.
Como foi possível acreditar na ficção de que os comunistas pós-Mao se haviam convertido em zelosos capitalistas sem prestar atenção a mais nada, nomeadamente à importância que a elite chinesa confere à história e de que a China continuava a ser um Estado comunista? Bastaria alguém ter levado a sério o conteúdo do “Documento 9”, um comunicado distribuído pelo Comité Central do PCC aos seus membros, em Novembro de 2013, para fazer soar todos os alarmes em Washington e Bruxelas.
O colapso da União Soviética levou as sociedades e governos ocidentais a acreditar no “fim da história”. Inaugurou um período de unipolaridade do poder americano e, com ele, o desenvolvimento de um sentimento de húbris, tão pernicioso para grandes potências no passado. A globalização avançou a todo o vapor na sombra do aprofundamento de uma cumplicidade perigosa entre o poder político e um punhado de multinacionais. A interdependência económica atingiu níveis nunca antes vistos.
Em Pequim, por contraste com o ambiente de confiança e euforia política vivido no Ocidente, tiraram-se as devidas ilações do desastre soviético, sobretudo aos golpes fatais que as reformas da Perestroika e Glasnost haviam infligido na legitimidade política e capacidade de controlo do poder pelo Partido Comunista Soviético. Entretanto, em 1989, o massacre de Tiananmen confirmou que a ala mais conservadora e reacionária do PCC não consentiria uma abertura política do regime.
Em 1946, os Estados Unidos tinham George Kennan em Moscovo. O seu Longo Telegrama, um prodígio de análise e leitura da natureza política do regime soviético, teria sido um excelente guião estratégico para o Departamento de Estado e diplomatas americanos em Pequim em 1989. Continua a sê-lo hoje, embora seja evidente que a China de Xi Jinping não representa o mesmo desafio que a URSS representava no início da Guerra Fria, nem sequer o mesmo desafio que a China de Deng Xiaoping representava. Porém, no essencial, as conclusões de Kennan mantêm uma atualidade impressionante no que diz respeito à compreensão do pensamento estratégico das elites políticas chinesas de hoje.
Independentemente da opinião que se possa ter de Donald Trump, a sua passagem por Washington pode ter estado na origem de uma das maiores e mais consequentes transformações na orientação da política externa norte-americana, mais que não seja por ter forçado as suas elites a refletir de modo sério sobre o futuro das relações com a China. Frequentemente criticada, a imprevisibilidade de Donald Trump teve a virtude de, pela primeira vez em décadas, confundir a elite política chinesa. Nas palavras brutalmente honestas de um insider do PCC, “quando Trump iniciou a guerra comercial com a China, nós não sabíamos como lidar com ele”. Os tradicionais canais de comunicação política entre Pequim e Washington, pacientemente cultivados pelo PCC ao longo dos últimos 30 anos, fecharam-se durante os últimos quatro anos. Pequim viu a sua influência junto dos círculos do poder político em Washington mitigada.
Sob pressão do eleitorado americano para mostrar uma posição de força, a administração de Joe Biden tem na China um adversário formidável. Para lhe fazer frente vai precisar de recorrer à postura combativa e transacional da administração do seu antecessor ao mesmo tempo que deveria revisitar o pensamento de George Kennan. Um regresso ao status quo dos anos de Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama, o grande objetivo da oficialidade chinesa, seria um erro terrível.