O fim dos estímulos na economia americana

No meio de uma semana onde em Portugal praticamente só se debateu a decisão de Marcelo de dissolver ou não o parlamento, e quando seriam as eleições, um alarme às economias (mais um) veio do outro lado do Atlântico e passou praticamente despercebido: o início do fim dos estímulos à economia como resposta à Covid. Dito assim, parece algo normal quando estamos a caminhar, queremos acreditar, para o fim da pandemia. Portugal, na sua dimensão, iniciou o mesmo caminho, mas no caso dos Estados Unidos o impacto poderá ser “ligeiramente diferente”. Comecemos por uma ideia básica: a economia americana vive (e cresce) à base da dívida. O final de 2021 poderá assistir ao atingir dos 30 triliões de dólares de dívida pública. Para ser mais visual, coloco este valor em numérico: 30.000.000.000.000 USD, cerca de 2 triliões acima da dívida em Setembro de 2020. São quase 90.000 dólares por cada cidadão americano – incluindo os que acabaram de nascer. Olhando de forma relativa e face ao PIB, este valor representa cerca 126% do PIB americano (a dívida portuguesa ronda os 135% do nosso PIB). Numa abordagem natural, diríamos que não é sustentável e um risco enorme para a estabilidade da economia (e economias) mas por enquanto vamos manter a versão de José Sócrates e já voltaremos ao risco que está à vista de todos, mas que parece não convencer ninguém (os recordes nos principais índices acionistas não param de ser batidos e as avaliações de empresas – em especial as tecnológicas – são cada vez mais irracionais e com muito pouca correlação com o seu real valor contabilístico).

Voltando ao tema do fim dos estímulos, importa salientar o que é e qual o impacto pretendido, mas também, o impacto que pode realmente suceder. No início da crise pandémica, os governos decidiram “apoiar” as economias com injeções diretas de liquidez. O governo norte-americano não foi exceção e foi definido um plano de apoio mensal de 120 mil milhões de dólares, através da compra de dívida. Isto significa que em 2021, a FED injetou na economia americana 1.200 mil milhões de dólares. Agora, e como os mercados já previam, decidiram reduzir esse montante em 15 mil milhões por mês, até chegar a zero em 2022. A ideia era simples: garantir a necessária liquidez ao mercado e que existisse capacidade de financiamento da economia e das empresas durante um período em que o consumo e o normal funcionamento do sistema estava extremamente constrangido pelas consequências da pandemia. Se em teoria temos uma solução perfeita, onde está o risco e porque estou tão preocupado com a redução dos estímulos que agora se anuncia? Vamos juntar esta questão ao tema da dívida norte americana e vamos só analisar alguns conceitos e indicadores para depois podermos chegar à conclusão.

Inflação, de pontual e normal a permanente e perigosa

Tudo o que os governos não querem numa situação destas é inflação. Num cenário em que é importante dar liquidez aos mercados, uma política de taxas de juro baixas é importante para dar consistência a esse objetivo e permitir um acesso ao crédito barato e sustentável. A título de exemplo, aquando da aprovação do plano de ajuda da FED, que abordei no paragrafo anterior, a projeção de inflação para a economia americana era de “até 2%”. Neste momento está acima dos 4% e continua a subir. Para quem detesta ler artigos demasiado técnicos vamos simplificar o problema: inflação ocorre quando há mais dinheiro para gastar que bens disponíveis, ou seja, a procura supera a oferta. Lembra-se da ajuda da FED? Pois bem, os governos mundiais, simplesmente despejaram dinheiro nas economias (e nalguns casos – incluindo o português – sem grande critério). Durante meses, a economia acumulou reservas porque o consumo simplesmente não era possível: estávamos em confinamento. De repente, desenvolveu-se um novo paradigma: os rendimentos mantiveram-se (obviamente que existiram milhares de situações em que tal não sucedeu, mas temos de olhar para a economia como um todo e não particularizar) mas o consumo teve uma redução significativa, ou seja, criou-se uma situação que permitiu a poupança. Como fator potenciador, o mercado recebeu ainda moratórias e suspensões de pagamentos, que elevaram esse nível de poupança, visto que, se existiram pessoas e empresas para quem esse apoio foi fundamental, muitos outros usaram-no apenas por precaução ou simplesmente porque a ele tinham acesso. Toda essa poupança está agora disponível para consumir e os consumidores estão sedentos desse mesmo consumo, depois de meses fechados em pandemia, ou seja, o mercado tem uma pressão compradora.

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Este cenário já era suficiente, mas vamos adicionar uma última variável: a crise nas cadeias de fornecimento. Com a paragem das economias, a produção mundial travou e isso tem um impacto direto e devastador quando a economia volta a reanimar. Ao contrário de uma barragem que pode parar o fluxo de um rio, mas que ao abrir as suas comportas assiste ao rio a correr novamente à velocidade necessária, a economia não tem essa capacidade. Imagine uma fábrica que depende de inúmeros fornecedores. Com a pandemia, esses fornecedores foram obrigados a mudar de profissão, deixaram de ter acesso às matérias primas necessárias ou simplesmente tem ciclos de produção demorados. Essa fábrica, por mais que queira dar resposta aos pedidos de consumidores ávidos, agora que a economia reabriu, não tem a capacidade de fornecimento que o mercado exige. Adicionalmente, as alterações nos mercados de trabalho dos diversos blocos económicos, levaram a uma ausência de mão de obra necessária a este arranque. Um bom exemplo disso foi a crise dos motoristas de camiões de combustíveis no Reino Unido há umas semanas.

Ou seja, em resumo, temos um aumento significativo da procura, alavancada numa liquidez em valores recorde, e um forte constrangimento na oferta, prejudicada por consequências de uma pandemia que, simplesmente, paralisou toda uma cadeia de produção. Como já vimos, este cenário cria as condições perfeitas para um crescimento da inflação e à sua manutenção nos próximos trimestres.

Aumento das taxas de juro. Combater a inflação ou agravar um problema

Chegamos, assim, à última variável deste puzzle: o combate natural à subida da inflação. O modelo habitual para pressionar a inflação e fazer com que a mesma recue para os níveis desejados, é através de uma política de subida das taxas de juro. Já vimos, acima, que tal não é desejável quando o que se pretende é estimular a economia e manter a liquidez. No entanto, o risco de uma inflação elevada é algo que os governos não podem ignorar face ao impacto nefasto que pode ter no crescimento económico. Muitas economias já colocam como provável o início do ciclo de subida das taxas diretoras. Foi, aliás, com surpresa que esta semana o Banco Central inglês manteve as suas taxas, quando todos os analistas apontavam para uma primeira subida. Não foi esta semana, mas será certamente num futuro próximo, sendo que os EUA já sinalizaram este movimento para 2022. Apenas a União Europeia afastou, para já, este cenário.

Vamos, mais uma vez, tentar simplificar o conceito. O que acontece (em teoria) numa subida de taxas de juro e porque é que isso “resolve” um cenário de inflação? Para começar o custo do dinheiro fica mais alto. Os empréstimos têm taxas de juro associadas, e com a subida dessas taxas, por consequência, os empréstimos ficam mais caros. Isto leva a que alguns agentes económicos possam restringir as suas decisões de endividamento, investimento e consumo. Esta primeira consequência tem impacto direto no consumo e como tal reduz a pressão do lado da procura. Por outro lado, temos o aumento da remuneração do dinheiro, ou seja, as taxas de juro dos depósitos também sobem e as decisões de investimento e consumo podem ser desviadas para poupança por via de uma maior atratividade do valor obtido com esse instrumento financeiro. Mais uma vez, temos a transferência de valores do consumo e a consequente redução da procura. Temos assim, uma menor pressão compradora que leva à estabilização ou redução de preços, ou seja, menor inflação. Se em teoria resolve, então porque temo que possa ser um problema? Está na altura de olharmos para todas as questões que ficaram em suspenso e pintar todas as cores num quadro final.

Estagflação, um palavrão ou a verdadeira crise económica que ninguém quer

Comecemos por olhar para as variáveis: temos dívida em valores recorde, temos o final dos estímulos à economia e ao final da liquidez artificial nos mercados, temos uma subida acima do esperado (e desejado) da inflação na economia mundial e temos um ciclo de subida de taxas de juro a bater na porta dos principais bancos centrais. Como pode este cocktail de ingredientes resultar numa tempestade perfeita? Bom, considere que as economias terão menos liquidez num momento em que não estão ainda robustas no pós pandemia, considere ainda que com a crise energética e a crise na distribuição a pressão na inflação pode não abrandar e some-lhe que o aumento nas taxas de juro têm um impacto direto nas dívidas soberanas, e estas estão em recordes absolutos. Consegue imaginar uma dívida de 30 triliões a sofrer o impacto do aumento do seu custo por via do aumento das taxas de juro?

Este é um cenário que ninguém quer, mas que os indicadores não desmentem e que me levam a introduzir o último conceito: estagflação. Trata-se de uma combinação entre uma elevada inflação e uma estagnação ou contração da economia e resulta numa crise económica com consequências no emprego e no aumento dos níveis de pobreza. Este é um cenário raríssimo, porque não é natural existir inflação elevada num momento de estagnação económica, mas já aconteceu e com uma curiosidade histórica: foi na crise dos combustíveis da década de 70. Haverá na crise energética em curso uma macabra coincidência e o mundo prepara-se para ter de lidar com uma verdadeira crise económica quando ainda não saímos de uma crise pandémica? Eu acredito que se as políticas dos principais atores económicos não se alterarem, sim e pode fazer mais dano que a Covid.