Estava a ler o relatório da Inspecção Geral das Finanças sobre o processo de cessação de funções de Alexandra Reis enquanto pensava no dominó infeliz do caso TAP – ainda mais infeliz porque é exemplar de um modo de funcionamento deste governo, irresponsável, entre outros modos de funcionamento igualmente maus.

É muitíssimo conveniente para o governo que a responsabilidade caia por inteiro nos colos de Pedro Nuno Santos, Christine Widener e Manuel Beja – como se não fossem todos escolhas do próprio governo – enquanto espera que acreditemos na estanquicidade dos ministérios incomunicantes. Não vi, não ouvi, não falei. Governantes à imagem daqueles bibelots irritantes, três macacos em fila, com as mãos sobre os olhos, os ouvidos e a boca.

Este governo de maioria absoluta e enorme disponibilidade de meios, saído da anterior legislatura, portanto com o tempo do seu lado, sete anos, e com capacidade para levar a cabo as reformas necessárias na administração pública, no SNS, na educação, na habitação, degradou estes bens que lhe foram confiados. E o maior deles, a esperança. Como se isto não fosse suficientemente danoso, engajou-se num discurso polarizador que, está demonstrado à saciedade, causa erosão democrática, favorece os populismos e a emergência autocrática. A isto ainda soma a desfaçatez de informar os portugueses das extraordinárias melhorias que ninguém sente.

Um governo eleito deve governar. Cair depois de desbaratar o que não lhe pertence, é fácil e a memória guarda para lembrança presente o mais recente desses desvarios, o de Sócrates, as perdas que tivemos, os sacrifícios feitos e aos quais demos significado com uma ideia de futuro que agora se apresenta desfeita. Não há relatório que chegue para isto.

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Portugal está divorciado. De um lado, uma minoria, e aqueles que a orbitam numa relação promíscua com o poder político, vive num mundo edénico onde o privilégio é a norma. Do outro, o infame «país real» onde os salários expressam a maior queda, em termos reais, desde 2015 em todos, repito, todos os sectores de actividade, públicos e privados, e de qualquer dimensão empresarial. Os dados não são da oposição – se ela existe… – são do Instituto Nacional de Estatística.

Este recuo salarial não vem desirmanado. A relevância do mérito de pouco ou nada conta ao lado da relevância das relações estabelecidas na mesma paisagem social ou de conveniência. Não pode surpreender-nos a fuga dos mais jovens para fora do país. É uma manobra de sobrevivência. O efeito de contaminação é transversal. Os abusos de poder fazem-se impuníveis. O pequeno copia o grande. O privado copia o público. Nas mais ínfimas decisões: do valor de uma indemnização aos preços praticados nos supermercados enquanto a base da pobreza se dilata com quem um dia foi a classe média.

E os portugueses recuam para dentro de si mesmos, para lugares onde a sombra, a cada dia, toma a luz. Tão bem o disse Dom Duarte, logo ao início do XIX capítulo do Leal Conselheiro, há setecentos anos, como se fosse hoje. «Por quanto sei que muitos forom, som, e ao diante seram tocados deste pecado de tristeza que procede da voontade desconcertada, que ao presente chamam, em os mais dos casos, doença do humor manencorico, do qual dizem os físicos que vem de muitas maneiras (…)». Vem assim: depois de perdida a fé, depois de perdida a esperança, sobra só a paciência feita dos restos da mesa e a certeza de que, façamos o que fizermos, é o que temos, outros serão iguais ou piores. O mesmo que se vê nas crianças filhas de pais alcoólicos violentos: nada se pode prever a partir do comportamento pessoal, cumprir ou não cumprir as regras é indiferente porque o abuso é aleatório. Não cumprir as regras, não aceitar o abuso e ser abusado até à transformação em abusador é uma saída. Outra, aceitar o abuso para sobreviver enquanto se cumprem as regras, vira para dentro o potencial de destruição e abre um processo de silêncio que amarfanha e faz um dia igual a outro numa sequência de duração e nada mais. Os dois juntos, socialmente, isto é, a aliança da violência e da apatia, são os tijolos da construção das autocracias. A vulnerabilidade, Eric Froom, explicou-o, é o pasto do autoritarismo.

De tão avançado este mal que nos assola, não sei se conseguiremos, depois do seu «perseguimento», na senda do nosso rei, alcançar a cura. Mas sei o fim de um poema de Manuel Afonso Costa: «(…) De ti eu espero que de dentro de ti te ergas para vires ao nosso encontro abençoar os passos que hesitam entre todos os caminhos».

A autora escreve segundo a antiga ortografia