Nós que perdemos na luta da fé
não é que no mais fundo não creiamos
mas não lutamos já firmes e a pé
nem nada impomos do que duvidamos

Ruy Belo, in Nós, os vencidos do Catolicismo

Todas as manhãs sem exceção, movido pelo espírito justiceiro, acordo com uma vontade súbita de atirar qualquer espécie de enlatado a um membro do governo. É por isso que, não vá o diabo tecê-las, não vou ao supermercado antes do meio-dia. O espírito justiceiro é como a ressaca: antes de um belo café, um mergulho no mar, algumas horas em meditação e uma Coca Cola de tamanho grande do Mcdonald’s é maleita que não tem cura. Sem este preceito medicinal, aconselhado por médicos e especialistas, não passo de um homem embriagado pela justiça e tolerância. Mas é coisa normal. Qualquer pessoa razoável que viva neste país deve sentir-se atraído pela arte de arremessar objetos a membros do executivo, seja de esquerda ou de direita. Por isso, se acordar com as ganas de uma forte investida de alumínio contra o governo não é doença, é rotina de um português com sentimentos. O desejo impetuoso de lançar latas de atum ao Ministro do Mar, de Ice Tea ao Ministro dos Negócios Estrangeiros e de cogumelos laminados à Ministra da Agricultura é, aos dias de hoje, um mui nobre ativismo político. É uma espécie de bombardeamento sem maldade cuja causa é, claro está, o bem comum.

Findadas estas manhãs difíceis de intensa raiva interior, ainda dominado pela irritação de um país que tarda em cumprir com os seus mais importantes desígnios, reconheço que é possível reivindicar e proclamar justiça com outros modos, de guardanapo no colo e sem comer de boca aberta. Talvez seja isso mesmo o que separa um moderado de um radical. Ambos desejam atirar toda a espécie de objetos cortantes a ministros e secretários de estado, mas só um deles cumpre o tão sonhado projeto de estampar na testa de um ministro as palavras “Salsichas Izidoro”. Ambos reclamam por um país melhor, mas apenas um considera que um país melhor se constrói como nos diziam quando éramos pequenos – a colorir seres humanos à bruta. Ambos anseiam melhores políticas para o ambiente, habitação, igualdade e economia, só que um deles pensa seriamente que é sensato e civilizado interromper apresentações de livros com os quais não concorda em nome do Pai, Filho e Espírito Santo. Os moderados fazem canções, protestos, debatem e escrevem artigos de opinião. Os radicais interrompem as canções, os protestos, os debates e rasuram os artigos de opinião. Uns falam, dialogam e rejeitam qualquer censura e violência; outros, à moda antiga, investem toda a sua liberdade a impedir a liberdade alheia, consentido tudo e mais alguma coisa se a causa for, segundo os próprios, virtuosa.

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Uma coisa é lutar por causas nobres, combater acontecimentos que cada um no seu juízo considera injustos e gastar energia na vocação de ser trolha de um país melhor. Nestes casos, protestar é, felizmente, uma ação legítima e essencial. Outra, bem diferente, é normalizar ações violentas, intolerantes, próprias de um mundo pouco civilizado e autocrático ou totalitário. Numa das ocorrências, interrompeu-se uma conferência e atirou-se coisas a um ministro, diminuindo-o. Noutra, impediu-se que pessoas exercessem o seu direito de falar sobre um livro que escreveram. Em ambos os casos, o intuito é só um e chama-se censura. Reitero que nada tem a ver com os temas ou alvos em causa – o ponto aqui não é se o assunto é bom ou mau em si mesmo (deixaria isso para outras núpcias) –, mas sim com as armas com que se quer combater, ainda para mais quando são disparadas munições em prol da bondade e da tolerância, fazendo exatamente o contrário do que se quer promover.

Depois de assistir aos dois acontecimentos da semana passada (a apresentação do livro interrompida e a tinta com que Duarte Cordeiro foi agredido – sim, não é preciso atirar pedras para se considerar agressão), pergunto-me se a intenção de algumas pessoas é mesmo esta: a de fazer da política um lugar selvagem e inóspito, onde a liberdade mais valiosa é a de quem concorda com as nossas opiniões, até porque a outra, a de quem discorda, não presta e está fora de validade. Pergunto-me também se a tolerância é isto mesmo que tais radicais proclamam ou, antes pelo contrário, aceitar que o outro pense o oposto do que eu penso e mesmo assim desejar que ele possa dizê-lo em voz alta.

Há, nestes dois assuntos, algumas curiosidades, e com elas faço perguntas com respostas mais ou menos evidentes. Não é interessante que tenha sido Rita Matias, deputada do Chega, e alguns membros da esquerda radical a dizerem que o Ministro provou do seu próprio veneno? Não é interessante que o Expresso, na notícia sobre a interrupção da apresentação do livro, apelide de “desordeiros” os invasores, e, a propósito do arremesso de tinta fale agora em “ativistas”? Não é interessante que parte dos que protestam contra o evento sobre a transição climática critique a participação da Galp ou EDP neste processo, como se a solução fosse excluir os principais protagonistas da mudança que tantos de nós pretendem? Não é interessante que, diante das mil opções lícitas e sóbrias para se protestar, os arruaceiros com inclinações apostólicas de ambos os lados decidam escolher duas que têm como efeito calar os opositores? Não é também interessante que sejam as duas pontas da barricada (à esquerda e à direita) a concordarem mais nos meios a utilizar para discordar de alguém? Comprova-se a velha teoria dos extremos que se tocam.

É que a liberdade é a liberdade. Não existe uma mais digna ou moralmente superior do que a outra, mesmo que eu e o meu semelhante estejamos nos antípodas da concórdia. E se o desejo, perante o sangue jorrado das feridas profundas deste país, é não dialogar, não deixar falar, não deixar fazer, e virar costas a um debate sério, produtivo e nobre, então significa que caminhamos a passos largos para uma montanha que se tornará cada vez mais difícil de escalar.

Duarte Cordeiro disse que “faz parte”. Os invasores do livro infantil disseram que os fins justificam os meios. É preciso ter lata. Independentemente das causas, o que aconteceu é inaceitável. Há outras maneiras de fazer ouvir a minha voz e de combater por causas justas. Até existem formas lícitas de combater por causas que eu, no meu entendimento, considero injustas, inclusive indefensáveis. Mas isto não pode fazer parte, nem pode ser normal. Confundir vandalismo com ativismo é mau presságio. Pelo menos num país democrático e livre. É que num país democrático e livre não se impõe à força uma visão da sociedade, quer seja boa ou má. Vai-se a jogo, aceita-se as regras com bom senso, perde-se de vez em quando e ganha-se de vez em quando, sem nunca desistir de lutar com coragem e respeito.

PS: termino com a breve história da irónica façanha alcançada pelos “ativistas” depois dos desacatos. O ministro, enquanto trocava de roupa, viu a sua popularidade aumentar. O livro, esse, esgotou.