Não estou fora do rio. O meu barco ainda está dentro de água, nas mesmas águas de todos nós. Só que estou na margem.

Já não me encontro no centro do rio, no meio das águas em movimento, não navego as correntes e as ondas e os rápidos. E já não os reconheço.

Dantes, eu não estava na margem, estava no centro do rio, nos rápidos e nas ondas e nas correntes, lutava todos os dias para navegar as águas revoltas, para as dominar e domar. Havia outros comigo, a fazerem o mesmo. Nem sempre pensávamos da mesma maneira, nem sempre concordávamos com o que deveria ser feito, mas estávamos todos nas mesmas águas, no mesmo rio, que era o nosso rio. Sentíamos que tínhamos de estar ali, conhecíamos os cantos às águas e às curvas, às rochas e às margens, e aos diferentes segmentos do leito.

Era o nosso rio, estávamos bem no centro dele, e íamos domá-lo e fazê-lo melhor.

O tempo passou. E as coisas mudaram.

O rio já não é o mesmo. Já não reconheço o rio que era o meu. As ondas e os rápidos, as margens e as rochas, as correntes e aqueles que o navegam são diferentes.

E eu já estou cansado. Cansado porque farto deste navegar constante, a achar que mudo alguma coisa, que afinal não mudo nada. Cansado porque fatigado, sem vontade de gastar as forças e as energias que ainda tenho, e que valorizo porque percebo a sua finitude.

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E as pessoas que navegam o rio também já não são as mesmas. São diferentes. E é assim que deve ser. Agora o rio é delas, e não meu. Elas que o naveguem, e lutem, e tentem domá-lo e mudá-lo. Elas que acreditem que isso é possível.

Eu já não. Ainda gosto de estar no rio, de navegar. Mas de modo distinto, agora. Aqui na margem. As águas são mais calmas, navego como quero. Não fico no caminho de ninguém, não faço concorrência a ninguém, os que querem o centro das águas que o tomem. É deles.

Eu fico a vê-los.

O rio já não é o mesmo. É diferente do rio que era meu.

No meu rio, perdíamos mais tempo a ler livros do que pequenos textos e imagens que duram menos de três minutos. Dispendíamos mais tempo com cartas e tabuleiros do que com jogos num ecrã.

Lutávamos por eliminar a discriminação baseada em cor ou sexo, e aceitávamos aquela que dependia das capacidades físicas ou intelectuais de cada pessoa. Nas águas de hoje, procura-se implementar a discriminação positiva de quem pertence às minorias, com a consequente discriminação oposta de todos os outros. E não se aceita de bom grado que se considerem uns mais aptos do que outros para determinadas funções, de acordo com as aptidões que subjectivamente lhes atribuímos.

No meu rio, sexo era uma característica dos seres e o género pertencia às palavras.

Fazia parte das nossas ondas a liberdade de cada um acreditar e defender o que considerava certo e verdadeiro, devendo o combate contra aquilo que julgávamos errado ou falso fazer-se através dessa defesa da nossa versão do certo e real.

Agora as correntes aceitam uma única direcção das águas, obrigando à submersão de tudo o considerado incorrecto. As crenças, teorias, ideologias e convicções são ensinadas nas escolas, desde a primária, vendidas em anúncios e na comunicação social, promovidas por tudo o que seja www, tudo isto como se fossem verdades científicas únicas (uma contradição em si mesma, isto de haver verdades únicas e científicas). E insulta-se, processa-se, cancela-se, bloqueia-se, impede-se quem diga algo de diferente.

Não se luta demonstrando a nossa verdade, mata-se à nascença a possibilidade do outro defender a sua.

No meu rio, aprender a frustração era algo de básico na educação de todos nós. Aprendíamos cedo que não podemos ter ou fazer tudo o queremos, e que temos de ter e fazer coisas que não queremos. Fazíamos birras e fitas e tudo o que vem no armamentário de uma criança, mas acabávamos por aprender que as coisas são como são, nem sempre são justas, há que aceitar o que tem de ser e lutar pelo que é possível ser de outra forma. E saber diferenciar uma coisa da outra.

Mas no rio de hoje, cada vez mais são as crianças que têm o poder de quererem ou não quererem. E, quando se tornam adultos, permanecem como as crianças que foram: só fazem o que querem e não fazem o que não querem. E se calhar está bem assim, é o que é certo e é melhor. Já não sei. Só sei que não é este o meu rio. Outros que naveguem nele.

No meu rio, os novos vírus respiratórios eram encarados como apenas mais um, sem que se pensasse sequer em fechar as pessoas em casa durante meses, encerrar negócios levando-os à falência, diminuir a riqueza e aumentar a pobreza, aumentar a mortalidade pelas outras doenças, e provocar um aumento enorme de doença mental em todos, novos e velhos, crianças e adultos, apesar de todos os que avisaram que seriam essas as consequências (e esses foram perseguidos e calados e processados e despedidos por delito de opinião), sem ninguém ser responsabilizado por isso, mas antes com condecorações subsequentes dos responsáveis dessas anormalidades, condecorações atribuídas por outros iguais a eles.

Era um rio que queríamos navegar por nós próprios, no nosso barco, obtido à custa do nosso trabalho, por isso mesmo, nosso. Procurávamos que as nossas capacidades e potencialidades fossem elevadas ao seu máximo, para irmos o mais longe que nos fosse possível, alcançar o auge das nossas pessoas. Isso exigia esforço, dedicação, trabalho, fazer coisas que não nos apetecia, que não gostávamos, que não queríamos (que ninguém queria, gostava ou apetecia, mas que era preciso que alguém fizesse), e nós éramos capazes de tudo isso.

No rio de agora, os que o navegam não se coíbem de usar os barcos dos outros, que nunca fizeram seus pelo seu esforço. O objectivo parece ser fazer apenas o que se quer, gosta e apetece naquele momento. É quase deixar-se ir nas águas, vogar ao sabor da corrente e dos rápidos e nunca lutar contra nada. Fazer diferente é considerado inglório e é mal visto.

Este rio já não é o meu rio. O meu rio é passado, não é presente.

Eu ainda cá estou. Mas na margem. A navegar à minha maneira. Até ao dia em que desembarcarei em terra.