Quando quero pensar que já estivemos pior do que hoje, penso que, um dia, Calígula nomeou senador o próprio cavalo. E mesmo assim, o mundo continuou. Ainda não estamos aí, digo com os meus botões; malgrado todas as coisas absurdas que Trump fez ou ameaçou fazer, ainda não lhe ocorreu nomear o cavalo para o Senado. Mas só ultimamente me dei conta: Trump não é Calígula; nós é que somos. Trump é o cavalo; e nós já o nomeámos senador. Pior: imperador. E preparamo-nos para o voltar a fazer. Eventualmente, vitalício.

O que quer que aconteça nas eleições presidenciais americanas do próximo dia 5, já perdemos. E continuo a tomar a liberdade de usar o plural majestático porque nele estou a incluir, não os apoiantes dos democratas, mas os apoiantes da democracia, incluindo os milhões que não se querem convencer de que estão a apoiar a sua própria extinção. E já perdemos porque, mesmo que Kamala Harris ganhe, ganhará por poucos. Porque, pelos vistos, dez anos depois do aparecimento de Trump na corrida ao lugar de pessoa mais poderosa do mundo, o sistema democrático continua sem conseguir arranjar alguém capaz de lhe ganhar por mais do que por pouco – na melhor e cada vez mais improvável das hipóteses.

Primeiro, não arranjou melhor nem mais fresco do que Hillary Clinton; depois, não arranjou melhor nem mais fresco do que Biden; agora, não arranjou melhor nem mais fresco nem menos solução de última hora do que a muito fracamente avaliada vice-Presidente Kamala Harris (e essa é uma das poucas coisas verdadeiras que Trump tem dito e para o qual, em devido tempo, muitos analistas avisaram).

Mas isto seria considerar a questão apenas do lado democrata. Do lado republicano, ao fim de dez anos, também não se arranjou melhor. Nem perante as críticas e alertas das maiores figuras do partido, de Mitt Romney a Mike Pence, da família Bush à Cheney, nem de generais e antigos colaboradores de Trump, nem de tudo o que viram acontecer ao longo destes dez anos: a recusa em aceitar o resultado das eleições, a tentativa de tomar o poder pela força, o desvio de documentos classificados, a amizade com a outrora arquirrival Rússia, as ameaças de pôr o exército na rua contra a própria população, de prisão dos opositores políticos, de fecho dos meios de comunicação social que lhe sejam adversos. Os factos não importam nada. e não importam não porque os apoiantes de Trump acreditem no que ele diz, mas porque não acreditam no que nós dizemos. Porque já não acreditam em nada – porque, algures, o sistema democrático falhou clamorosamente e chegou a este ponto, aquele em que descobre que contém nele a possibilidade da sua própria autodestruição.

Como? Onde? O que correu mal ao certo e quando, ninguém sério parece saber dizer, mas é óbvio que não foi uma só coisa nem um só momento. Deste lado do mundo, todos comentamos a campanha americana como se compreendêssemos perfeitamente a América, mas, se ouvirmos os americanos, rapidamente perceberemos que estão tão confusos como nós. Jornalistas, historiadores, escritores, comediantes, académicos e artistas em geral confessam-no em múltiplas entrevistas e ocasiões: como foi que chegámos aqui?  Como é que as pessoas se preparam para confiar outra vez em alguém que, claramente, só pensa nele mesmo? Porque é que latinos, negros, mulheres vão votar num candidato que ameaça abertamente os direitos de latinos, negros e mulheres? Como é que os conservadores elegeram representante dos valores tradicionais do Cristianismo alguém que só fala de dinheiro, armas, desprezar o próximo e que não chegaria ao terceiro verso da “Ave Maria” com um papel à frente?

Mas a questão não é Trump, pelo que a resposta nunca será encontrada nele, nem analisado ao microscópio. Porque, quando não for Trump, será outro, eventualmente pior, como se vai vendo pelos processos de pré-primárias e primárias republicanas e pelos múltiplos sucedâneos que vão brotando mundo fora. Dito de outro modo: Trump não vai causar o fim da democracia; é a decadência da democracia que causa Trumps. E qualquer eventual resposta sobre como foi que isto aconteceu tem de ser procurada é nela – na democracia. A ver se ainda a tratamos e reinventamos, antes que, a seguir ao cavalo, venham os burros.

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