Outro título para este artigo poderia ser: eu sou da direita que não prescinde da democracia liberal. Há duas perguntas a que talvez valesse a pena a direita começar por responder. A primeira é se quer ser Governo ou se só quer ser um alter-Fight Club. A segunda, se respondeu antes que quer ser Governo, é se quer ser Governo do país inteiro – governar o país todo, com as suas ideias naturalmente, mas o país todo com todas as suas diferenças – ou se só quer ser o Governo “dos nossos”. Se respondeu às questões com a segunda opção dos pares, este artigo não lhe interessa. Mas se é assim, talvez a democracia liberal também não lhe interesse.

A direita portuguesa anda confusa e zangada. Afastada do poder por quem não hesitou em apoiar-se em amantes bolivarianos, saudosistas do Enver Hoxha, defensores da URSS estalinista e normalizadores da Coreia do Norte, não se recompôs depois disso. Já agora, afastada do poder pelo mesmo partido que vem agora rasgar as vestes e ranger os dentes pela solução governativa (que reedita a AD) encontrada para a Quinta do Sr. César; perdão, para os Açores. Aqui, a piada (e a desfaçatez) faz-se sozinha.

Mas voltemos à direita.

Uns viraram à esquerda, mimetizando o PS, na esperança de que a incompetência do mais incompetente Governo de que há memória em Portugal e a habitual alternância democrática lhes ofereça o poder sem necessidade de grande mérito. Sobre o pior Governo de que há memória vale sempre a pena insistir, ad nauseum, em Tancos, pós-Tancos, Pedrogão, pós-Pedrógão, destruição do SNS por preconceito ideológico, nepotismo, assalto ao Estado e a todas as esferas do poder (executivo, legislativo, judicial e comunicação social), máxima carga fiscal da história, ataque quase mortal à liberdade de escolha na educação, controlo social e calamitosa e iníqua gestão da crise pandémica. E fiquemo-nos por aqui, por economia de palavras, porque o artigo é curto e a lista de incompetência é longa.

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Outros andaram 40 anos para trás para redescobrirem a Nova Direita, um projecto iliberal e pagão, obliterando toda a tradição democrática e democrata-cristã. Sobre isto, uma palavra de desagravo: a maior parte dos que embarcaram nesta patranha não leram Benoist, e dos que leram a maior parte tresleu. Outros ainda, ante o populismo e radicalismo da extrema-esquerda lusa acharam que era tempo de gritar mais alto e falar mais grosso; palavras a reter: gritar mais alto e falar mais grosso. Uns quiseram ser não a direita, mas a anti-esquerda; outros, mais insatisfeitos ainda, quiseram ser o anti-sistema, o anti-tudo. Estes, potencialmente mais eficazes eleitoralmente que os anteriores, capitalizam a desesperança e o desespero dos deserdados da prosperidade, dos mais vulneráveis, abandonados pelo poder e pela voracidade da História. Curiosamente os mesmos que a esquerda dizia proteger e representar; precisamente os que a esquerda mais castiga na hora de distribuir dividendos pela clientela corporativa.

Confusa e zangada, despojada do poder, a “direita” resolveu ainda atacar a direita democrática reformista e pragmática, chamando-lhe (vou ficar-me pelos epítetos que se podem escrever no jornal) a direita que a esquerda gosta, a direita do sistema, a direita cobarde, a direita que pede licença, e por aí fora.

É uma dor de alma. Hoje, fragmentada e dorida, faz lembrar o sketch da Judean People’s Front dos Monty Python. Nesta rábula, como é evidente, a polarização e a radicalização, imbuídas do purismo ideológico e da virtude dogmática, encontram em cada esquina motivos de cisão. Tudo serve para apontar o dedo ao outro menos puro, mais tíbio, mais do sistema, mais cobarde, mais esquerdista. Claro que, nesta orgia de dislates, ganha o incumbente: o PS.

Mas este debate entre esquerda e direita, que insiste na amálgama irreflectida da direita para fazer frente à amálgama programada da esquerda, está inquinado. Porque há um problema prévio que não é de forma, de tom, mas de substância, de fundo; e ao qual ninguém – mergulhados todos que estão nesta guerra – parece querer responder. Porque a discussão virtuosa entre direita e esquerda só faz sentido num quadro de democracia pluralista e liberal. Se esta condição deixar de existir – e nas últimas eleições legislativas os partidos que se lhe opõem, numa joint venture de Joacine a Ventura, somaram 20% dos votos – não há cá esquerda nem direita. Ora, num tempo em que a realidade cá é o que é, e no mundo as wokenesses e derivados e a ascensão – com aplausos até de jovens turcos do PS – parece dourar os feitos da ditadura chinesa, há algumas coisas básicas pelas quais devemos pugnar primeiro.

E essas coisas básicas têm, desde logo, a ver com a forma como se olha para a política e para o governo da cidade. Para uns (à esquerda e à direita), um campo de batalha cultural, onde, movidos pelo ódio, se aniquilam inimigos. Para outros, um lugar de discussão de visões alternativas, onde pelo amor ao comum se quer vencer os adversários.

Sobre o amor ao comum, e antes que me venham acusar de colectivismos esquerdistas, porque o comum é importante para um conservador, não há como não voltar a Roger Scruton: paz, liberdade, lei, civilidade, espírito público, a segurança da propriedade e da vida familiar, tudo o que depende da cooperação com os demais, visto não termos meios de obtê-las isoladamente, tudo aquilo cujo o trabalho de destruição é rápido, fácil e recreativo e o labor da criação é lento, árduo e maçante. Isto é algo que eu não consigo dissociar da democracia e do constitucionalismo liberal. E, para mim, quando isto está em causa, antes isto e só depois as diferenças entre esquerda e direita. Dito de outra forma, eu prefiro chá sem leite, mas para poder continuar a tomar chá, e outros chá com leite, é importante que não me cortem a água nem me roubem a chaleira.

Outra coisa básica que também está em causa é a forma como se tratam as minorias e a forma violenta como se usam traços de identidade para fazer política identitária segregacionista. Algumas das críticas legítimas, e nalguns casos urgentes, que a direita faz a uma certa esquerda, no que às políticas de identidade concerne, não se compadecem com espelhos do que se critica. Só o constitucionalismo liberal protege as minorias e só o constitucionalismo liberal salvaguarda a dignidade da pessoa humana.

Finalmente o título deste artigo. Porque é que eu sou da direita que não prescinde da esquerda? Porque o que nos separa é um mundo inteiro de liberdade e progresso, mas para que este par persista, é absolutamente imperioso que essas visões se possam digladiar num clima civilizado e de paz. Não prescindo da esquerda porque gosto de a combater; livre e democraticamente. Porque não prescindo do pluralismo e da diferença, nem da democracia e do constitucionalismo. Porque o espaço público e o debate político não precisam de guerra, mas de debate. E eu, que sempre fui de direita, não preciso de um certificado de pureza passado por estes (já não tão) jovens arrivistas da “direita”.

Querem pôr nomes nas ideias? Sou da direita que não prescinde da esquerda porque encontro em Disraeli, Bismarck e Churchill, mais inspiração do que em Trump, Bolsonaro e Orban.

E antes e depois de ter subscrito esta posição, com mais ataques vindos da direita que da esquerda, confesso que estou um bocado como o Pinheiro de Azevedo, que me apetece parafrasear: estou farto de brincadeiras, fui insultado, várias vezes, já chega, não gosto de ser insultado, é uma coisa que me chateia; e olhem, quanto ao facto de me chamarem da direita cobarde, bard****** mais a direita cobarde.