Os eufemismos desempenham uma importante função social: amenizam e agilizam muitas das nossas interações pessoais no dia a dia. Mas o seu uso no debate intelectual ou político, onde deve imperar o rigor na análise e a honestidade nas propostas, é ilegítimo. Infelizmente verifica-se o seu uso cada vez mais generalizado não só na academia, mas também no debate político e social. Mas ainda mais lamentável é o seu uso sistemático no ataque aos direitos fundamentais da pessoa humana (no que se segue, pessoa refere-se sempre à humana, não à jurídica como Estado ou empresa).
Vejamos um exemplo: homicídio significa matar deliberadamente uma pessoa inocente. Pessoa inocente ponto. Independentemente do seu sexo, idade, raça, religião ou convicções políticas. O homicídio é considerado ilegítimo universalmente: não se conhece cultura ou civilização que tenha tolerado a destruição de um ser humano sem causa gravíssima e sem apelo ao interesse público. Note-se que a defesa da pena de morte sempre se fez com base na existência desses dois pressupostos: como retribuição (o preço de uma vida humana é outra vida humana) e, secundariamente, como prevenção (juízo de elevada probabilidade do réu voltar a atentar contra a vida de outra pessoa). E, felizmente, já nem estas razões são aceites na maior parte dos sistemas jurídicos.
É verdade que se podem encontrar tentativas de justificação quer do homicídio (não com esta palavra), quer da escravatura (outra prática contra a dignidade humana), em algumas situações históricas. Mas esses casos são sempre feitos baseando-se na negação espúria da humanidade da vítima. Alguns exemplos sobejamente conhecidos são a tentativa de Aristóteles negar que os escravos são seres humanos e, portanto, podem ser propriedade de outrem; a dos socialistas soviéticos em negar a humanidade de burgueses e proprietários, e a dos nacional-socialistas alemães em negar a humanidade dos judeus. E note-se que, nestes casos, a negação da humanidade do outro foi feita com recurso a eufemismos: “purga”, “limpeza”, “purificação” de “parasitas”, “ratos” e “pestilência”.
“Aborto” também é um eufemismo: não o termo que se refere a um fenómeno natural, mas a aplicação desse termo ao ato de assassinar um ser humano no útero. O termo exato, porque a vítima é uma criança, é infanticídio. Aliás “aborto” é um eufemismo tão antigo que o seu uso ao longo de muito tempo já gastou a sua capacidade eufemística de ocultar a realidade. Assim novos eufemismos tiveram de ser cunhados para propor este tipo de infanticídio: “interrupção voluntária da gravidez”, expressão que também já está algo gasta, “direitos reprodutivos”, “saúde reprodutiva”, e outros.
Repare-se que “interrupção” também é um eufemismo: a vida da criança assassinada não é interrompida, é terminada, sem qualquer possibilidade de recomeço. “Voluntária” é outro eufemismo: o bebé assassinado tem tanta vontade de morrer como aqueles adultos e crianças que foram assassinados em Solovki, Treblinka, ou Bataclan, e é precisamente a voluntariedade no ato de matar outra pessoa que é especialmente condenável no homicídio. “Gravidez”, palavra usada para tentar ocultar a humanidade da pessoa a assassinar, também atua como eufemismo: como se o ser humano que está no útero tivesse menos dignidade, ou humanidade, do que está fora; ou como se ao mesmo tempo que se termina a gravidez não se terminasse com a vida de uma criança inocente.
Os arrazoados na defesa deste tipo de infanticídio também são intrinsecamente eufemísticos. “O feto não é um ser humano.” Então que será, tendo em conta que foi gerado por dois humanos? Um ser bovino? Curiosamente é frequente os defensores políticos do homicídio intrauterino se oporem ao “assassínio” bovino.
“O feto é uma menina.” Como se ser menina fosse defeito.
“O feto é defeituoso”. Como se um defeito, qualquer defeito, tirasse a humanidade a uma pessoa; a eugenia é um argumento especialmente repugnante, e traz à memória os programas de eliminação de ciganos, judeus e pessoas com “defeitos” físicos, mentais ou hereditários implementados sistematicamente pelos nacionais-nacionalistas. Aliás, a semelhança nos eufemismos então usados (“solução do problema judeu”) com os aplicados hoje (“terminação” ou “resolução da gravidez”) é patente.
“O feto não viável”. É verdade que nos dias que correm um feto só se torna viável com uma licenciatura, às vezes só com mestrado. Será então de permitir a “interrupção voluntária dos inviáveis”? E se não for viável ser artista sem subsídios? Será a sua inviabilidade, a sua incapacidade para sobreviver quando o cordão umbilical que os liga aos dinheiros públicos é cortado, argumento bastante para, literalmente, os assassinar? Se não é para uns, por que razão será para os outros?
Eutanásia, etimologicamente “boa morte”, é outro eufemismo que pretende obscurecer a natureza da ação: a do ato homicida. Em que sentido se pode considerar ser bom matar um ser humano fragilizado? “Sociedade solidária” não se tornará também um eufemismo se, e quando, tal crime for “legalizado”?
“Morte a pedido” também é uma expressão ambígua. A pedido de quem? Dos herdeiros, por interposta pessoa do próprio? Ou da Secretaria de Estado do Orçamento, que terá uma quota a fazer cumprir, ou da companhia que gere o “plano de saúde”, já que o homicídio hospitalar sai muito mais em conta que cuidados paliativos?
Mas, e se for o próprio a pedir? Há muitas coisas que não se permitem mesmo que sejam os próprios a pedir, seja por razões civilizacionais, seja porque se pretende criar uma “sociedade solidária”: não se permite que uma pessoa se venda para escravo, mesmo que o deseje; não se permite que uma pessoa aceite um emprego com remuneração abaixo do salário mínimo, mesmo que queira; nem se autoriza um casal a contrair matrimónio indissolúvel, mesmo que o requeiram. Se se defende que há coisas que um cidadão não pode fazer com o seu próprio corpo, com a sua própria vida, por maioria de razão não será de desrespeitar a sua vontade quando, num momento de fraqueza física ou de coação moral, ele pede a sua própria destruição?
E que dizer de “morte digna”? Em nenhuma civilização a morte à mão de outro homem foi até hoje considerada digna, exceto a ocorrida em combate. E a dignidade da morte em combate advém, sempre, da coragem na ação e fortaleza no infortúnio, e também na dor, de quem morre. O ser humano tem uma dignidade que faz com que o golpe de misericórdia, que é aplicado humanamente a animais, seja considerado desumano quando aplicado a uma pessoa.
“Morte assistida”? Assistida de que modo? Na da escola de Josef Mengele (1911—1979), ou na de Madre Teresa de Calcutá (1910—1997)? Será que quando passarmos a ir ao médico, a ir ao hospital, teremos de pedir um esclarecimento: “O sr. dr. de que escola é?” Ou será que a proteção ao consumidor obrigará à colocação na entrada do gabinete médico de uma placa com os dizeres: “Mata-se sem ser pedido”, “Mata-se a pedido” ou “Cura-se o paciente e mata-se a dor,” conforme a escola? Uma placa destas teria evitado o drama que Alfie Evans e a sua família estão a viver neste momento.
Exige-se, portanto, que quem defende a legalização do aborto diga honestamente, e sem eufemismos, ao que vem: propor a legalização do infanticídio. E que quem defende a legalização do homicídio de velhos, doentes ou pessoas de outro modo fragilizadas, não esconda a sua proposta atrás de expressões eufemísticas ou politicamente corretas. Aliás, “politicamente correto” é um eufemismo para “eufemismo”.
É verdade que eufemismos estupidificam. Mas pior que isso, também matam.
Professor de Finanças, AESE Business School