Nesta altura em que vamos votar nas eleições europeias e se abanam lencinhos brancos pela saída dos mafarricos da troika, que, a acreditar em muito do que por aí se lê, por cá aterraram sem que ninguém os tivesse chamado e sem culpa nenhuma nossa, talvez venha a propósito dizer algumas palavras sobre a questão da soberania.

É verdade que se trata de um conceito a tender para o equívoco, como todos os conceitos políticos (e, já agora, morais). E, para piorar as coisas, há entre a soberania entendida no plano exclusivamente conceptual, que só pode ser absoluta, e a soberania concebida no plano prático, que é forçosamente relativa, um pequeno abismo. Estes dois factos, entre outros, incitam à prudência quando se fala de soberania, mas nenhum deles invalida a legitimidade do conceito. Nem, sobretudo, a realidade da coisa.

Em termos gerais, e descontando aqueles que prezam esta noção velhinha, há duas correntes de pensamento dominantes. A primeira, obviamente restrita a sofisticados círculos académicos e visando horizontes mais vastos que os da Europa, pronuncia-se a favor da plena ilegitimidade do conceito. Por outras palavras, uma desejável nova ordem mundial passaria necessariamente pela dissolução da obsoleta e nociva convicção de que os estados são soberanos, isto é, se relacionam, como realidades independentes, no plano externo, com outros soberanos, também eles realidades independentes, e, ao mesmo tempo, possuem, no plano interno, supremacia sobre a sociedade que representam. A segunda corrente, consideravelmente mais popular, procede não pela crítica da soberania mas por aquilo que se poderia chamar o seu recalcamento. Boa parte dos nossos chefes políticos e vários teorizadores do federalismo representam-na bem, e pode-se dizer que é a opinião dominante nos media. A União Europeia, enquanto comunidade absoluta, é uma tão bela e perfeita ideia que do puro acto de a pensarmos decorre a necessidade imperativa da sua realização. As dificuldades empíricas, venham elas de trapalhadas práticas ou da presuntiva perversidade de certos indivíduos, são obstáculos menores, que a célebre “vontade política” se encarregará de remediar. Basta pôr o nosso sofá, como dizia o outro, na direcção da história.

Ora, qualquer destas posições apresenta algumas dificuldades que merecem ser consideradas. Deixemos de lado a primeira posição, cuja ambição é demasiado vasta e da qual a discussão só pode ser teórica, e centremo-nos na segunda. Não interessa aqui procurar as razões que tornaram possível o recalcamento da questão da soberania: elas têm provavelmente a ver com o esquecimento do modo como as paixões fundam os elos que permitem a existência das comunidades políticas, um esquecimento que a filosofia política começou a praticar muito antes de ele chegar ao cérebro dos políticos. Interessa sim que a perda tendencial da soberania externa (um dos momentos centrais foi obviamente a criação do euro) é muito efectiva e que ela fatalmente se repercutiu na faceta interna da soberania através da degradação da relação entre representados e representantes. Não que a legitimidade dos representantes tenha sido minimamente afectada enquanto tal, mas há uma indiscutível perda de substancialidade no modo como se ligam aos representados. Um facto que não passa desapercebido, como se sabe, a quem nunca simpatizou com a legitimidade democrática ou, por uma razão ou outra, deixou recentemente de com ela simpatizar.

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Mas com isso, afinal, acabámos por lidar bem. A maioria das pessoas não simpatiza com radicais, nem sequer com radicais improváveis. Mais grave é a efectiva diminuição da capacidade deliberativa e o estranho vazio que ela gera. Uma das marcas de um estado soberano é a possibilidade de os representantes poderem deliberar sobre matérias substantivas, isto é, de interesse nacional. Ora, se há facto patente nestes últimos anos é que praticamente deixaram de o poder fazer em Portugal, o que reduziu o debate político a um grau extremo de puerilidade, directamente proporcional à gravidade da situação. Acusar Passos Coelho de, possuído por uma fanática ideologia, levar à prática um plano malévolo para destruir o país tem inegavelmente a virtude de nos permitir fazer sentido de tudo, o que conforta o espírito e nos faz (se não formos muito exigentes) sentir inteligentes. Mas é uma virtude discutível, porque é sempre um bocadinho esquisito quando tudo, mas mesmo tudo, parece fazer sentido. O mundo, em geral, não é assim.

Certamente que, como alguns dizem, é falso pretender que não há alternativas. A priori, sem dúvida há-as. Acontece que a incómoda facticidade faz com que, no plano empírico, elas sejam só muito dificilmente sondáveis, ao ponto da imperceptibilidade. Dito de outra maneira: a imaginação política encontra-se, pela força das circunstâncias, reduzida ao mínimo, por mais espertas que sejam as cabeças. Seria bom reconhecer este ponto, porque não o reconhecer conduz, o mais das vezes, a formas regressivas de pensamento e de linguagem que funcionam como evasões imaginárias da realidade, imitações da imaginação política e não verdadeira imaginação política.

A troika foi-se embora (para cá ficar, é claro) e, convenientemente mais pobres, vamos votar em eleições europeias. Mas não parece que a União Europeia progrida no sentido de um arranjo que permita um aumento da soberania dos estados, condição sem a qual a nossa vida política continuará a ser a macaqueação de uma real actividade deliberativa, nem – o que quase é pior – se vê que a maioria dos nossos políticos aguente verdadeiramente olhar a realidade de frente durante muito tempo. Pura e simplesmente, não suportam, nem a isso se sentem obrigados, e o estilo circense no fundo agrada-lhes, até por escassez de outras possibilidades ao seu dispor. A pior coisa dos últimos anos de Sócrates, a que mais doeu, foi o convívio quotidiano a que fomos obrigados com a negação da realidade, junto com a surpresa de ver que muita gente se dava bem com isso. Por incrível que pareça, pode-se repetir. Se calhar, a soberania não foi feita para nós.