Uma mulher de saia rodada num vermelho ardente, com o seu avental estreito detalhadamente bordado, de camisa branca com mangas largas e colete levemente espartilhado, canta o Vira para deleite das mais pequeninas, que também elas vestem orgulhosamente um traje semelhante ao Traje à Vianesa, aquele que tanto impressionou Ramalho Ortigão e este relatou em 1887 nas “Farpas”. Podíamos estar na Romaria D’Agonia, pelas ruas de Viana do Castelo, mas estamos no bairro Ujong Pasir em Malaca, Malásia. A mulher, canta o Vira em cristang, um crioulo de base portuguesa, herança de um passado distante da expansão portuguesa, mas que esta comunidade mantém viva há mais de 500 anos.

(Fonte: AFP-JIJI)

Recuemos um pouco e recordemos Saramago. O Prémio Nobel da Literatura, falando de Lisboa, diz: “Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória.“. Fala de uma identidade que habita em nós, e, assim, mais que um lugar entre Espanha e o mar, para o escritor, Portugal revela-se como um sentimento, um ideal que habita dentro dos Portugueses. Em janeiro conversamos sobre a União Ibérica idealizada por Saramago, mas justiça lhe seja feita, com esta União ele não defendia a extinção da cultura Portuguesa, mas sim a sua emancipação num contexto livre de fervores nacionalistas. Diz o escritor: “Deixemos na irónica paz dos túmulos aquelas mentes transviadas que, num passado não distante, inventaram para os Portugueses um “dia da raça”, e reivindiquemos a magnífica mestiçagem, não apenas de sangues, mas sobretudo de culturas, que fundou Portugal e o fez durar até hoje”.

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Mas então, nacionalismos à parte, quem são os Portugueses? Que cultura é esta que inspira um sentimento livre das correntes físicas da geografia? Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego, deu-nos uma pista importante ao dizer “Minha pátria é a língua portuguesa”. Ser Português é, portanto, carregar em si uma cultura cuja expressão máxima reside na língua portuguesa, aquela que por força da natureza e do engenho se expandiu aos cantos mais recônditos do planeta, ligando a uma só voz tantos povos quantos as marés permitiram, epicamente retratada n’Os Lusíadas de Camões.

Ao exemplo do bairro português de Ujong Pasir juntam-se os “Mestiços do Sri Lanka”, e também os de Goa, Damião, Diu, Dadrá e Nagar-Aveli na India. Macau e Oceânia são também exemplos vivos do alcance da cultura portuguesa. Juntam-se a estes o exemplo dos Judeus Serfarditas que dizem ser de Castelo de Vide, mas nunca estiveram Portugal, nem eles nem os seus antepassados desde há 500 anos quando foram expulsos, e no entanto falam o ladino, uma língua formada com junção do espanhol e do português medievais. Na América do Sul e em África vivem exemplos ainda mais gritantes. A estes juntam-se as comunidades que se vão formando no Canadá, E.U.A, França, Luxemburgo e Reino Unido. Mais recentemente juntaram-se todos aqueles que por força da crise ou outras circunstâncias emigraram, e que nesses sítios certamente encontraram uma comunidade de falantes da nossa língua que os recebeu calorosamente. Juntam-se também tantos outros exemplos que não menciono aqui mas que igualmente ilustram o alcance e profundidade da língua portuguesa no planeta. Devemos, por isso, ser exigentes quanto à conservação e promoção deste legado, que é o nosso maior património enquanto cultura distinta e, na realidade, a verdadeira força da nossa identidade.

O Governo Português recentemente anunciou a intenção de integrar o português como língua de opção no ensino básico e secundário de 40 países. Esta iniciativa é naturalmente de louvar, tal como foi a atribuição da nacionalidade portuguesa a descendentes de judeus sefarditas e a portugueses oriundos da India, medidas que ajudam a sustentar os laços dessas comunidades à cultura portuguesa, e por inerência a uma rede comercial com base nessa cultura. É também de louvar a recente visita do  Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro, à Malásia, onde participou na 2ª Conferência das Comunidades Portuguesas na Ásia e nas festividades populares comemorativas de São Pedro nesse local, o que resultou num acordo entre o Instituto Camões e uma universidade da Malásia para a abertura de um curso de língua, e ainda na criação de um Portuguese Chicken Burger” no McDonald’s Malaio (é que nem sequer estou a brincar). Mas a estas boas práticas são muitas vezes acompanhadas por maus exemplos que desvirtuam este esforço.

O facto de Portugal ainda não ter uma digna representação diplomática na Malásia sinaliza o claro desinteresse a longo prazo nessa comunidade, e falamos de um país que tem uma das principais praças financeiras do Mundo. Também a reação, ou falta dela, da Diplomacia Portuguesa ao massacre no Sri Lanka que atacou cirirgicamente a comunidade luso-descentente, ou ainda o pontapé que o presidente do Instituto Camões deu publicamente na história da nossa língua, prontamente chamado à atenção pelos nossos irmãos do outro lado do Rio Minho, demonstram a falta de compromisso com a proteção da língua portuguesa. Temos também o exemplo de ainda nem termos uma Representação Permanente junto da Organização Marítima Internacional, essencial para a proteção de um legado marítimo que está intimamente ligado à expansão da língua portuguesa, vital para as ambições económicas de Portugal. A vocação universalista da diplomacia portuguesa não pode ser uma desculpa para a inoperância e falta de estratégia na proteção a longo prazo do património cultural que é a língua portuguesa.

O uso do cristang na Malásia deveu o seu quase desaparecimento ao simples facto de ser economicamente irrelevante. Se não sustentarmos o ensino do português numa estratégia de integração económica das comunidades que falam a língua portuguesa, o resultado será, inevitavelmente, o mesmo e este esforço terá sido em vão. Sendo a língua o principal veículo para relações comerciais, uma rede tão vasta como a da língua portuguesa deveria certamente providenciar os alicerces para uma diplomacia económica baseada nesse património.

Ainda há um mês a UE e o Mercosul fecharam um acordo de integração económica após 20 anos de negociações. Este acordo é uma excelente oportunidade para alavancar as exportações para o Brasil, mercado que representa meramente 2,64% das exportações portuguesas. A língua será aqui um fator essencial para o aproveitamento do potencial deste acordo e poderá dar-se aqui o mote para finalmente se arrancar com uma visão de diplomacia económica que vise proteger o legado da língua portuguesa, o que obviamente beneficiaria à prosperidade de Portugal.

Este sentimento da portugalidade, para lá das fronteiras naturais, encontra paralelo no misticismo à volta de Jerusalém. Para determinadas correntes religiosas, com a destruição do Templo no ano 70 d.C. às mãos de Roma, Jerusalém deixou o seu plano terrestre e passou a figurar no plano celestial, configurando-se assim como um sentimento enraizado no íntimo de cada um. Não deixa de ser curioso que alguns turistas que visitam Jerusalém terrena sofram do “síndrome de Jerusalém”, um transtorno psicológico fruto sentimento de profunda deceção. Procuremos então evitar o síndrome de Jerusalém em Portugal e cumpramos o desígnio que nos foi conferido como guardiões da língua portuguesa.

Este desígnio passa por identificarmos os erros do passado, cultivarmos o legado que nos foi atribuído e valorizarmos as várias vertentes em que esta cultura se expressa, para começarmos todos a beneficiar deste património “líquido”, expressão cunhada por Paulo Cunha e Silva para definir a cidade por ele idealizada: “Os líquidos insinuam-se e escapam entre os territórios de possibilidade, ocupam tudo, como se uma cheia invadisse a cidade.”, apelando a uma ideia de permeabilidade da cultura.

Nada ilustra melhor o efeito multiplicador que a língua tem do que a música. Falava Branko (ex Buraka-Som-Sistema), ao Observador, sobre a comunidade lusófona que este juntou no seu novo álbum “Nosso”,  quando disse: “É uma comunidade musical que sinto que está a celebrar a língua portuguesa de uma forma um bocadinho maior do que se a celebrasse apenas aqui: se colocarmos a Mayra na equação basta pensar no impacto que ela tem em países francófonos, no impacto que o Dino tem na Holanda e junto da diáspora toda cabo-verdiana, no impacto que a Mallu Magalhães, que vive aqui em Lisboa, tem no Brasil e em Portugal.”, mas vai mais longe “Se calhar daqui a dez ou quinze anos podemos estar exatamente na situação em que os músicos latinos estão agora.”. Se aplicarmos o mesmo efeito multiplicador a outras manifestações culturais e económicas, seja a literatura, a culinária ou mesmo as indústrias têxteis, do calçado, ou tecnológicas, rapidamente percebermos o potencial que língua portuguesa tem de criar um mercado global que traz riqueza e progresso a todos que dele comunguem.

No seu poema “O Infante”, Fernando Pessoa disse-nos: “Quem te sagrou criou-te português; Do mar e nós em ti nos deu sinal. Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. “Senhor, falta cumprir-se Portugal.”. Que se cumpra Portugal, cumprindo-se, finalmente, a língua portuguesa.