Durante aquela tarde de Outono tinha chovido em Guimarães, estando o imenso verde da Casa de Sezim perfumado com aquela frescura entorpecedora que a caracteriza. Na sala de estar, uma antiga cozinha da zona mais antiga da casa, convertida em recanto privado da família, carregado de livros e memorabilia das viagens dos meus avós, estavam os dois sentados juntos da lareira com uma manta a aquecer-lhes as pernas juntamente com a sua fidelíssima escudeira, uma cadela Jack Russell. Como sempre, o meu avô dava a mão à minha avó ao som da lenha a arder e do noticiário das 7.

Aproximo-me e as faces serenas de ambos transformam-se num sorriso. Baixo-me para lhes dar um beijinho e sento-me ao lado deles, não sem antes dar um jeito na lareira que parecia estar a murchar. Prontamente me perguntam pelos estudos, pelo trabalho, pelos meus pais e irmãs e se preciso de ajuda para alguma coisa. Era essa a maneira deles me fazerem sentir que estavam presentes, mas eles sabiam que eu não precisava de nada e que eles estão sempre presentes.

Vasculho um álbum de fotografias antigas que estava pousado e cai uma fotografia do Flipper, um Hidroavião no qual a minha avó tinha viajado para os Estados Unidos. Ela tinha lá vivido na juventude, quando o seu pai lá esteve destacado. Sendo filha de diplomata, conta-me que quando lhe ofereceram a carta de condução decidiu faltar às aulas e ir passear de carro, e que quando chegou a casa achava que se tinha safado sem que o seu pai descobrisse, até que ligam ao Sr. Embaixador a perguntar se ele sabia da filha, já que tinham encontrado a matrícula do carro dela caída na Virgínia.

O meu avô, enquanto limpa as lentes dos seus óculos, recorda também o seu primeiro posto, precisamente nos Estados Unidos. Com um sorriso malandro conta-me que certo dia, num determinado evento com o Presidente dos E.U.A na altura, um responsável pelo protocolo cometeu a gaffe de apresentar o meu avô como presidente da República de Portugal. O erro passou sem que ninguém ousasse corrigir o pobre homem.

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Nascido a 13 de maio de 1917, no Porto, o meu avô Tão estudou direito em Coimbra, foi advogado e trabalhou no Tribunal do Trabalho antes de entrar na carreira diplomática. Católico por formação e devoção, não tivesse ele nascido no preciso dia das aparições em Fátima. Casou com a minha avó Chica e juntos tiveram quatro filhos. Estiveram nos Estados Unidos, Brasil, Noruega, Polónia e Turquia. Ambos recordam que o primeiro posto nos Estados Unidos foi uma lua-de-mel e que o Rio de Janeiro foi o sítio onde mais gostaram de viver. Em Lisboa, o avô Tão estava no Protocolo a quando da visita da Rainha Isabel II a Portugal, estando a fotografia dele com o casal real em destaque em cima do piano lá em casa. Nos verões aproveitava a pausa do almoço para ir da Infante Santo ao Estoril para um mergulho no mar enquanto a família lá fazia praia.

Juntos, os meus avós viveram imensas aventuras por todo o mundo, aventuras essas partilhadas pelos filhos e contadas a nós, os seus netos, que para sempre reviveremos essas aventuras no nosso imaginário. Connosco viverá também o aconchego da avó Chica, que contrastava o imenso carinho que tinha por nós com a rigidez com que comandava a Casa de Sezim, era esse o estilo dela. Connosco viverá também o caloroso sorriso do avô Tão e a sua enorme cortesia para com todos que os visitavam naquele recanto verde em Guimarães. A Casa de Sezim, na família desde 1376, foi o local que escolheram para pousar depois de uma vida pelo quatro cantos do mundo. Escolheram aquele local pois sabiam, mesmo antes de muitos de nós termos nascido, que assim estariam mais perto de nós. Generosamente, abriram as suas portas a todos os que os quisessem visitar e devolveram o encanto a um dos solares mais bonitos em Portugal.

A avó Chica partiu há uns anos, o avô Tão resolveu ficar mais um bocadinho, deixar os seus assuntos em ordem e aproveitar os netos e bisnetos um pouco mais. Passou os 100 anos, tendo recebido uma bênção do Papa Francisco por isso. Na semana passada o avô Tão partiu aos 102 anos. Como diplomata, o Embaixador António Pinto de Mesquita deixa um legado enorme, sendo ainda hoje mencionado como a referência de uma era no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Como avô, o seu legado será ainda maior, pelo exemplo de bondade, generosidade e dedicação que todos almejamos também carregar em nós.

No final do dia o avô gostava sempre de ficar mais um bocadinho a ver os seus filmes, mas, depois de resistir ao sono e da lareira se apagar, desliga a televisão e sobe para ir ter com a minha avó. De mãos dadas, os dois vão… desta vez para sempre.

Serão celebradas missas pela sua alma esta quarta-feira dia 26, em Lisboa, às 19h na Basílica da Estrela, e na sexta-feira dia 28, no Porto, na Igreja dos Carmelitas na Foz, às 19h.