Maldade dos ditos “versus” bondade dos outros: princípio que orienta a interpretação da inserção dos povos europeus no mundo, do passado ao presente. Da adesão voluntária, crescente e em alguns casos radical dos europeus ocidentais a este princípio, espoletada no rescaldo da II Guerra Mundial (1939-1945), tem resultado a minimização da violência endógena nas sociedades europeias como nunca no passado, na mesma medida em que nas sociedades do hemisfério sul tende a ocorrer o inverso.

Este é um dos enigmas civilizacionais da contemporaneidade.

Não são as teorias rousseaunianas do homem naturalmente bom corrompido pela sociedade, nem as teorias sucedâneas sobre as relações entre povos opressores e povos oprimidos que ajudam a compreender o enigma, uma vez que a rápida e avassaladora universalização de tais teorias está na génese e constitui a essência do fenómeno. A chave do enigma civilizacional está em textos como “Totem e Tabu” (1912-1913), “Reflexões em tempos de guerra e de morte” (1915) ou “O mal-estar na civilização” (1930), entre outros. É tese do seu autor, Sigmund Freud, que a assunção do complexo de culpa coletiva (própria) constitui uma fonte fecunda que permite (re)fundar a ordem moral das sociedades e, por essa via, garantir a sua viabilidade, vitalidade e sustentabilidade no tempo.

No último meio século, a forte identificação dos europeus com os seus complexos de culpa por razões históricas produziu o efeito de legar de bandeja aos outros povos o trunfo estéril do ideal de vitimização. Este passou a estar no âmago das atitudes e comportamentos das elites quanto mais estão em causa sociedades de territórios fortemente integrados, no passado, nos antigos impérios coloniais europeus e quanto mais recentes foram as independências. No coração do enigma está o facto de este presente envenenado resistir inabalável há décadas.
Recorro ao caso-tipo de Moçambique, país onde realizo trabalhos de campo desde 1997. Na essência, o que faço é conversar com os meus conterrâneos, em geral pessoas comuns pobres, para captar o sentido que atribuem ao mundo que os rodeia.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Primeiro os dados.

A guerra colonial ou luta armada de libertação nacional, no caso de Moçambique, durou dez anos (1964-1974), provocou cerca de três mil vítimas entre os militares portugueses e, ainda que juntássemos o número de guerrilheiros da Frelimo e de civis, dificilmente pode ter sido atingida a cifra total de dez mil vítimas. Tratou-se ainda de uma guerra geograficamente bastante localizada num país com um território muito extenso e que decorreu no período de maior transformação positiva da então colónia portuguesa em todo o século XX, quer ao nível do desenvolvimento da civilização material, quer ao nível do tipo de domínio que o Estado exercia sobre as populações africanas. Quando o país acedeu à independência, em 1975, não existiam sintomas de anomia social.

A posterior guerra civil que foi progressivamente surgindo, desta feita entre a Frelimo e a Renamo, foi bem mais prologada no tempo, tendo-se arrastado por cerca de dezasseis anos (1976-1992). Este conflito armado atingiu praticamente todo o extenso território do país, excetuando as principais áreas urbanas, foi tão-só destrutivo no plano material e social, forçou a migração de povoações inteiras em condições bastante precárias e legou um número indeterminado de vítimas, porém contabilizável sempre acima de um milhão. A anomia social legada pela guerra civil continua longe de ultrapassada ao fim de duas décadas de paz e de multipartidarismo.

Agora a interpretação dos dados.

Correspondendo as vítimas mortais da guerra colonial/luta armada de libertação nacional (1964-1974) a menos de um por cento das vítimas da guerra civil (1976-1992), no entanto a intelectualidade que se sente auto-legitimada para tratar do assunto tem laborado numa radical dissonância entre a realidade dos factos e a interpretação dos seus impactos e significados naquela sociedade africana. Com isso, a violência extrema entre “irmãos” que caracterizou a guerra civil tem permanecido numa espécie de limbo da memória coletiva dos moçambicanos. Esta, em particular no domínio dos discursos formais, persiste ultra-ocupada pelos males do “colonialismo” português, um subproduto de excelência da indústria académica e intelectual que, sediada na antiga metrópole, detém o monopólio da linha de produção de conhecimentos sobre as sociedades africanas.

Por diversas vezes latente desde finais dos anos noventa, quando, em meados de 2013, surgiram sinais mais preocupantes do retorno às armas em Moçambique, uma vez mais eu realizava trabalho de campo no centro do país. Fui conversando sobre o assunto com alguns jovens suburbanos comuns já nascidos em tempos de paz e multipartidarismo. Num país em explosão demográfica, o que faz predominar o segmento etário em causa, torna-se intrigante o desconhecimento, a atitude despreocupada ou distante com que os jovens encaram a guerra mais recente e mais devastadora alguma vez ocorrida no seu país.

Apesar da geração moçambicana mais velha, a que viveu os horrores da guerra civil, tender a manifestar atitudes relativamente diferentes, isso não suaviza angústias precisamente porque os sintomas da falta de exorcismo da violência armada podem converter-se em bombas relógio à medida que as gerações se renovem. Porque as memórias da guerra civil não foram formalmente institucionalizadas enquanto património refundador da identidade dos moçambicanos, os detalhes da guerra civil vão-se esfumando na memória coletiva, mas dificilmente ficarão fragilizadas as sementes da violência que lhe estiveram subjacentes, tanto mais ameaçadoras quanto mais protegidas da luz do dia.

Freud explica. Uma intervenção descuidada visando ultrapassar uma dada fobia (e.g. incapacidade de atravessar a rua sozinho) pode agravar a angústia que lhe está subjacente, posto que a fobia, menos grave, poderia ter a função de proteger o sujeito de males mais graves originados pelo desencadeamento da angústia (e.g. agorafobia). É esse o sentido da relação entre a violência da guerra e a violência social em tempos de paz tal como os seus significados se sedimentam na sociedade moçambicana, longe de ser caso único em África.

O contexto de guerra talvez protegesse melhor os indivíduos na relação com aqueles com quem partilhavam o quotidiano, precisamente porque existia uma ideia clara de que o inimigo estava do “outro lado”, fosse ele quem fosse. Na pós-guerra, foram-se tornando crescentemente mais difíceis de gerir as angústias difusas provocadas por uma violência social endémica, imprevisível, potencialmente recorrente, sempre latente e que não se percebe bem de onde vem, mas sabe-se que está “entre nós” e que já não dispõe de um horizonte de paz, formalmente instituída desde 1992.

Em contextos existenciais deste tipo, o terreno social para a retórica da paz que se quer antecipar a guerras e violências futuras, para a retórica da segurança das populações no seu dia-a-dia ou para a empatia social acaba por se tornar estéril.

O que descrevo é como se tivesse sido possível aos europeus terem omitido, relativizado ou desvalorizado os significados da II Guerra Mundial (1939-1945), um conflito bem mais devastador do que os conflitos anteriores, para se focarem apenas na mais distante no tempo, e ainda assim comparativamente bem mais contida, Grande Guerra (1914-1918), independentemente das relações que possam existir entre uma e outra guerras mundiais.

Vamos supor que nas sociedades europeias o horror da violência provocada pela Alemanha nazi (mas poderia ser a guerra colonial na perspetiva portuguesa) não tinha entrado em força nos manuais escolares de todos os níveis de ensino, no cinema, na fotografia, na literatura, na música, na imprensa, no dia-a-dia, em tudo quanto é espaço existencial com significado para o coletivo. O resultado seria as sociedades europeias viverem hoje num enorme equívoco na sua relação com a violência enquanto fenómeno iminentemente endógeno e, por isso mesmo, profundamente humano. Cenário inimaginável mas que a África atual, recentemente povoada por universidades patrocinadas por uma certa intelectualidade europeia, norte-americana e sul-americana, tornou possível.

Sendo a violência acima de tudo fruto dos incontornáveis instintos primários da espécie humana, sempre à espreita de uma qualquer oportunidade para se manifestarem (por isso, e após um longo período de paz e de grandes progressos civilizacionais, a erupção da barbárie entre os europeus há um século surpreendeu), trazê-los para o campo do conhecimento nas suas mais diversas áreas, destapar recalcamentos evitando moralismos, conhecer com a maior profundidade possível esses instintos primários, bem como as suas relações com manifestações intelectuais ou culturais quotidianas – constituem fórmulas para domesticar os instintos violentos da espécie, mantendo-os debaixo de um apertado controlo civilizacional.

Por alguma razão Freud teve a lucidez de se preocupar com a ideia de civilização abandonada pelas posteriores gerações de europeus progressistas que exportam, com grande sucesso, os seus ideais para África e para o mundo.

Termino dirigindo-me aos meus conterrâneos moçambicanos. Sei que o Professor Boaventura de Sousa Santos exibe um interesse profundo pelo vosso destino, como pelo de outros povos do hemisfério sul que toma por oprimidos pelo hemisfério norte, o dele. O que lhe fica bem. Mas é bom que saibam que a irresponsabilidade, incluindo para exportação, existe, e muita, em diversas universidades portuguesas e europeias e sabem melhor do que ninguém que a vida vivida pouco mais tem feito do que presentear-vos com faturas pesadíssimas de cada vez que permitem a propagação de pandemias.