Os últimos seis anos da governação portuguesa não serão mais que um parêntesis na história da nossa jovem democracia. Para além do grande alarido resultante da inclusão de partidos de ideologia extremista no arco do poder, pouco significado há a retirar da marca que a geringonça deixou na administração do país. Em síntese, poder-se-á resumir numa frenética reversão de um rumo político de recuperação gradual e sustentada que vinha sendo prosseguido pelo governo de Pedro Passos Coelho. Foi essa a argamassa que uniu esta solução que, após pouco mais haver para reverter – vai-se salvando, em parte, a legislação laboral – entrou num estado vegetativo prolongado pela anestesia que a pandemia introduziu na vida política portuguesa. Os sofríveis últimos dias da geringonça fizeram recordar a agonia vivida por Mozart no leito de morte enquanto compunha o seu brilhante Requiem, designação dada a uma peça musical destinada a acompanhar uma missa fúnebre. Tristemente, não viveria o suficiente para completar a obra, sendo necessária a intervenção de outros compositores para a terminar.
À semelhança de Mozart, também a geringonça teve um fim prematuro, não podendo testemunhar em vida toda a dimensão daquilo que criou. Não sendo surpreendente, tal ocorreu com bastante estrondo e numa fase particularmente delicada para o país. Em primeiro lugar, porque se trata de um momento em que Portugal procura recuperar dos efeitos devastadores da pandemia, tanto a nível social como a nível económico. Em segundo, e na sequência do primeiro ponto, porque existe uma bazuca vinda da União Europeia – que o primeiro-ministro não se coibiu de acenar durante a campanha para as autárquicas – com prazos apertados para ser aplicada. É bem possível que a bazuca venha a conhecer um destino semelhante ao do Portugal 2020, cujo montante total executado não deverá ultrapassar 70% da dotação inicial. Lamentavelmente, o capricho das cativações extravasou os domínios do Orçamento do Estado para se aplicar também aos fundos comunitários.
Num doloroso processo de separação, haverá sempre culpa de ambos os membros do casal – neste caso, do trio – mas não há que ter contemplações em apontar o principal responsável por este desfecho. Trata-se exatamente do autor desta arquitetura de base parlamentar, daquele que em 2015 decidiu desbaratar uma série de convenções da nossa democracia, António Costa. Muito foi especulado acerca dos motivos meramente pragmáticos que presidiram à concepção da geringonça por parte do à altura secretário-geral do Partido Socialista, mas sempre ficou claro que não havia a mínima ponte ideológica entre as partes e que a visão conjunta para o futuro do país não passava de uma série de ímpetos conjunturais. Além disso, a atitude sobranceira de dispensar acordos escritos após as eleições legislativas de 2019, na expectativa de manter os parceiros encostados às cordas, revelou-se particularmente errática.
Seis anos volvidos, podemos concluir, entre muitas outras coisas, que os portugueses se foram aproximando vertiginosamente da cauda da Europa no que concerne ao rendimento médio por habitante e que a carga fiscal não parou de aumentar o seu peso na economia portuguesa. Estes dois resultados são particularmente sintomáticos para uma solução governativa que não se coibiu de fazer suas bandeiras a reposição imediata de rendimentos e o chavão da “viragem da página da austeridade”.
Mais exemplos de política errática podem e devem ser elencados. O primeiro deles foi a atitude do Partido Socialista perante o acordo com PSD e CDS para a reforma do IRC, redundando na violação da palavra dada, um péssimo sinal para empresas e investidores acerca da estabilidade das grandes opções fiscais do país. Por oposição, decidiu-se reduzir o IVA da restauração, somando-se uma aposta quase unidirecional no setor do turismo. Não era preciso vir uma pandemia para se antecipar que estes setores – tendo a sua importância – não são o suficiente para dar sustentação ao crescimento de uma economia. Bastaria perceber que, na sequência de uma crise, quando se dá uma perda de rendimento generalizada, a maioria das pessoas acaba por ajustar o seu orçamento com menos viagens e mais refeições caseiras. Talvez esse raciocínio de causa-efeito não seja tão fácil de elaborar, recordando as palavras de Eduardo Cabrita quando assinalou que o ano de 2020 – com todas as restrições que conhecemos – registou um progresso no combate à sinistralidade rodoviária.
Pouco prudente também foi o desperdício da oportunidade que o contexto internacional favorável entre os anos de 2016 e 2019 proporcionou para reduzir o montante da nossa dívida pública. Sendo o rácio da dívida sobre o Produto Interno Bruto (PIB) a métrica mais utilizada pelos economistas para medir a evolução da dívida pública de um país, não podemos limitar-nos à mera redução deste quociente perante o nível de dívida de Portugal: é preciso reduzir o seu montante nominal. E a razão é muito simples. Perante a inevitabilidade dos ciclos económicos, basta entrarmos numa fase descendente para que esse rácio volte a aumentar, levando a maior pressão da dívida sobre o orçamento e a economia. Mais ainda, no atual contexto de inflação, a elevada dívida pública apresenta ainda riscos mais elevados. Se o Banco Central Europeu se vir forçado a intervir para conter as pressões inflacionárias, tal resultará muito provavelmente num aumento da taxa de juro sobre a nossa dívida pública, aumentando o montante pago em juros que os futuros Orçamentos do Estado terão de considerar.
Para mal do país, a ação da geringonça traduziu-se num somatório de oportunidades desperdiçadas e no esvaziamento de qualquer perspetiva de futuro para Portugal. Não direi, portanto, que o atual contexto de eleições antecipadas permitirá inverter o rumo que vinha a ser prosseguido, porque efetivamente não havia nenhum. Este momento proporcionará antes a oportunidade de voltar a encontrar um caminho depois de um hiato de seis anos em que a única preocupação foi desfazer em vez de construir. Para isso se concretizar, é necessária a intervenção de terceiros para concluir o Requiem à geringonça, tal como ocorrera com a missa fúnebre do prodigioso compositor austríaco. Desta feita, caberá aos portugueses dar-lhe o acorde final no próximo dia 30 de janeiro.