Sabem o que ultimamente me têm feito lembrar – e com recorrência assustadora – as redes sociais? O que Santo Inácio de Loiola escreveu no ‘Princípio e Fundamento’ dos seus Exercícios Espirituais. Dizia Santo Inácio que todas as realidades são boas, mas que as deveríamos usar ‘tanto quanto’. Para Santo Inácio era ‘tanto quanto’ nos aproximassem de Deus; para o que interessa ao meu argumento é ‘tanto quanto’ nos permita manter a civilidade, um mínimo de razoabilidade e, até, alguns resquícios (já nem se pedem muitos) de humanidade.

De facto, parece muito fácil concluir que muitas pessoas têm grandes dificuldades com o uso das redes sociais. São instrumentos novos nas nossas vidas e ainda não sabemos usá-los, relativizá-los, dar-lhes apenas a importância devida e, se for o caso, ignorá-los.

E não são apenas pessoas de literacia deficiente, que não entendem os argumentos nem as discussões, não percebem ironias nem sarcasmos, desconhecem os conceitos. O twitter está cheio de gente licenciada, ou mais, que não atinge que um tweet não é um paper académico, é uma minúscula opinião de um assunto maior, muitas vezes uma descontextualização abusiva. É certo que alguns tuiteiros conseguem sintetizar o pensamento sobre qualquer coisa em 280 caracteres (e antes em 140). Mas essas pessoas não merecem admiração pela capacidade de simplificação. Simplesmente não conseguem ver a realidade para além dos pretos e dos brancos, não enxergam relações nem consequências, vivem amputadas da capacidade de entender a plenitude das experiências humanas. Geralmente aparentam ter défice nas zonas do cérebro que processam emoções, o que, como António Damásio ou Daniel Goleman concluíram, tolda e diminui a própria racionalidade.

Isto para chegar a uma newsletter que recebi de Ricardo Martins Pereira, publisher da Magg, dando conta de insultos e ameaças em abundância por opinar que Medina esteve bem ao ceder os estacionamentos a Madonna. E que Gonçalo Beato fora alvo de bullying por adultos por causa de um texto sobre as vicissitudes de ser adolescente.

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Como já aqui escrevi na semana passada, discordo de Ricardo Martins Pereira. Penso que Medina decidiu mal – como de resto tem tendência para. Já o texto de Gonçalo Beato li-o com atenção e, como mãe de dois rapazes que mais uns anos e estarão na adolescência, guardei-o. Agradeço ao Gonçalo o seu testemunho.

Mas isto não interessa nada, se gostei e concordei ou não. Interessa que temos de começar a estabelecer que, para opiniões perfeitamente lícitas e fundamentadas, não são aceitáveis insultos e ameaças.

Penso que sim, as redes sociais também devem ser usadas para a censura social a opiniões racistas, misóginas e homofóbicas. Entendo a indignação generalizada perante incitações à violência sobre grupos ou indivíduos ou à supressão (incluindo através da promoção de constrangimentos culturais e sociais) dos seus direitos. E eu própria me recordo de me ter indignado quando uma deputada do PS culpou a austeridade europeia pelo terrorismo, ou um tuiteiro usou o cancro do estômago de um jornalista para atacar as posições sobre a fiscalidade das comidas com sal de alguns partidos. Há limites éticos (e estéticos) para a luta política.

Mas opiniões sobre a bondade de uma decisão camarária?

E que dizer de atacar um adolescente que devia ser elogiado por ter dado e fundamentado o seu ponto de vista? O que pretende esta turba de gente? Educar jovens repletos do proverbial respeitinho, sem capacidade crítica e com medo de expressarem pontos de vista? Pobres adultos quadrados que pensam assim. Mas não espanta. Depois do ralhete público, insuflado no twitter do presidente francês e completamente desproporcionado, que Macron deu a um adolescente insolente (e quem nunca foi um adolescente insolente?), também um magote de gente se regozijou com a humilhação pública de um miúdo de treze anos (que, claro, se trancou em casa com a vergonha). Repito: treze anos. Um, três. Na minha opinião, quem precisa urgentemente de ser educado são estes adultos.

Não são casos únicos. Há pouco tempo o twitter português perdeu dias em celeuma porque uma pessoa crítica do turismo atual publicou um comentário pouco abonatório sobre o comportamento de turistas num supermercado. Quem lesse a histeria pensaria que o autor havia sugerido esfaquear todos os turistas de Lisboa a Sintra. Mas não, era só um comentário normal. Há meses fiz comentários sobre um anúncio sexista de uma marca de sumos que costumava consumir. Não incitei a que ninguém incendiasse a fábrica ou atormentasse os trabalhadores. Mas passei dias a receber respostas de pessoas alucinadas que não conseguem lidar com o facto de eu não gostar de um anúncio (e parece nunca se viu protestos por causa de anúncios com mensagens estapafúrdias) e de gastar o meu dinheiro nos sumos que entendo.

Nos últimos dias, por um desafio de Francisco José Viegas, tenho andado a reler e escrever sobre a revolução cultural chinesa. As redes sociais também me recordam dessa boa altura em que tantas pessoas participavam cheias de gosto em sessões violentas de humilhação pública, promovidas pelos Guardas Vermelhos, dos desgraçados a quem calhava o azar de serem denunciados por crimes quase sempre imaginários como espião imperialista, agente de Chiang Kai-shek, prostituta, partidário de Lin Biao ou qualquer outro exotismo. Os pósteres de grandes caracteres que se afixavam por todo o lado com bufarias, muitas vezes anónimos, são incomodativamente reminiscentes do que se escreve nas redes sociais sob uma alcunha e sem fotografia da cara.

Há uma década ou duas era frequente a discussão sobre os malefícios da televisão. Havia quem não tivesse capacidade de filtrar as mensagens que a TV lhe transmitia, escolher programas ou, sequer, mudar de canal calhando viesse lixo televisivo. Estamos na mesma com as redes sociais. Há quem não saiba filtrar e aquilatar e processar o que lê. Ou, então, são todas as épocas que afinal têm Guardas Vermelhos.