Este é um tema que tinha em carteira para escrever há algum tempo. Esta espécie de espada que as pessoas têm sobre a cabeça permanentemente, neste mundo do século XXI e dos gadgets tecnológicos e das redes sociais, de poderem a todo o instante serem filmadas, fotografadas, em suma, expostas.

Os constrangimentos do comportamento em público sempre existiram, as convenções sociais que ordenam as interações entre as pessoas também, e não se esfumaram. Mas não chegam, como nunca chegaram. Todos temos momentos em que nos irritamos, em que perdemos as estribeiras, em que transgredimos, em que não estamos na nossa finest hour. Dantes, tirando casos graves, os momentos passavam e eram arquivados apenas nas memórias dos que os viviam. Agora corremos o risco de sermos filmados e sermos postados numa qualquer rede social para o mundo inteiro ver, rir, criticar e moralizar. Mesmo que o maior pecado que tenhamos cometido seja o de estarmos ligeiramente ridículos ou sermos pouco caridosos.

É certo que este deleite com o ridículo alheio sempre existiu. Em Pride and Prejudice, Mr Bennett, o pai da protagonista Lizzy, perguntava-lhe a páginas tantas ‘Para que mais vivemos além de para sermos o desporto dos nossos vizinhos e rirmos deles na nossa vez?’

Sucede que a exibição do ridículo no início do século XIX é um tanto diferente da total exposição, e para sempre, que as redes sociais e a internet permitem atualmente. E esta constatação agrava-se se repararmos que crianças e, sobretudo, adolescentes são também atirados para este ridículo e exposição. Digo sobretudo porque os adolescentes fazem mais coisas que as crianças, têm mais relações, movimentam-se mais e já têm telefones com capacidade de gravar, bem como acesso às redes. Além, claro, de estarem numa idade de exploração, descoberta e teste aos limites – traduzindo: uma idade particularmente propensa ao disparate e ao descalabro.

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Qualquer um que tenha sido um adolescente funcional fez asneiras em número assinalável e dá graças a todos os deuses do Olimpo ter sido adolescente antes do tempo em que se filmavam e postavam todos os maus momentos alheios. Quem não tem momentos embaraçosos e não ficaria mortificado se estivessem à distância de um clique para qualquer infoincluído?

Além do risco de exposição, estamos também numa era de botar julgamento sobre toda a gente. Três ou quatro linhas que escrevem ou meio minuto de filme em que fazem figuras tristes é suficiente para os justiceiros, que não conhecem o seu alvo de lado nenhum, traçarem com precisão cirúrgica o carácter alheio. Não há empatia, não há contextualização, não há misericórdia. (Mas há, claro, falta de inteligência e de compaixão.) Ou somos perfeitos nesta idade da internet ou estamos feitos em picadinho. Mais cedo ou mais tarde teremos um magote de gente esquecida das suas próprias limitações e pecadilhos para nos apontar o dedo acusador por algum crime certamente mais grave do que um genocídio médio.

Falei em adolescentes porque é a eles que quero chegar. Há dias apareceu um vídeo de uns rapazes americanos de uma escola católica, numa manifestação pró vida, com bonés ‘Make America Great Again’, parecendo que gozavam com um idoso que acumula com ser veterano e descendente de índios americanos. Digo parecendo, uma vez que já apanhei no twitter textos que referem que foi o veterano idoso que se aproximou do grupo e que os rapazes nem pareciam perceber bem o que sucedia. (Não vi nem um vídeo nem outro, e deliberadamente.) Não interessa, porque o meu ponto não tem a ver com a culpa ou inocência ou assim-assim dos adolescentes com bonés trumpistas.

Ainda que os adolescentes tenham zombado do veterano, nada desculpa a divulgação do vídeo. O comportamento não justificaria o enxovalho público massivo de adolescentes – que são, por definição, parvos -, que as pessoas fiquem a conhecer as suas caras e, logo a seguir, os seus nomes, que para sempre que alguém os googlar surjam ligados a um momento infeliz da adolescência.

Não é a primeira vez que sucede. Desta feita foram os anti-trumpistas a divulgarem, escandalizarem-se e verterem fel sobre adolescentes. Há poucos meses outro adolescente parvo – ou, pelo menos, espigadote – abordou Macron num evento público chamando-o ‘Manu’ depois de ter cantado A Internacional. O miúdo teve direito a tweet presidencial com repreensão pública e a uma onda de gente de direita (inclusive por cá) que parecia prestes a atirar-se de um precipício de tão horrorizada estava com tamanha falta de educação e respeito do garoto.

Há incontáveis casos desta estirpe, uns mais mediáticos que outros.

Evidentemente, adultos que esmagam desta forma adolescentes – que, afinal, não mataram nem violentaram ninguém – só porque os adolescentes foram tontos e desmedidos (como os adolescentes normais são) são bem mais perigosos e daninhos que qualquer adolescente provocador. Pessoas com idade para terem juízo que julgam adequado um enxovalho público em pelo menos dois continentes para miúdos a serem miúdos, bom, dão-me calafrios quando me lembro que estas magnânimas e ponderadas pessoas votam.

Mas não vale a pena deter-nos nesta crítica. Os adultos que vergastam digitalmente adolescentes não têm filtros que lhes permitam perceber este mal. E, no entanto, esta possibilidade de exposição de adolescentes não pode continuar a triturar vidas e a criar engulhos para os seus futuros.

Chegou o tempo das plataformas onde tudo se divulga encontrarem uma forma de impedirem a difusão de embaraços sob a forma de vídeos de adolescentes. Há umas semanas, para partilhar um texto cujo título continha a expressão ‘guerreiros urbanos’, tive de enviar uma resposta para o Facebook explicando por que razão não deviam apagar aquele conteúdo. Parecido, em melhor, será possível para vídeos que contenham adolescentes. E, caso esta intervenção não resolva o problema, cabe ao legislador proteger a imagem dos adolescentes num tempo de adultos adeptos de bullying.