1. O primeiro round foi ganho: que melhor do que apanhar um país desprevenido num fim de semana com Fátima, futebol e Leslie para despedir quatro ministros de uma assentada? A surpresa política, forte, convenhamos, só iludiu porém os distraídos,

Ao ter metido tudo no mesmo saco, relativizando e desqualificando os pesados casos que tinha pela frente, António Costa exibiu aquela leveza de pensamento e comportamento de quem tudo se permite por se achar incólume, talvez mesmo acima do bem e do mal. Chamam-lhe “habilidade”. Grande parte da plateia aplaude mas repare-se na leveza: ao fim de um longo folhetim indecoroso, a questão de Tancos — que arrasaria qualquer governo pela gravidade da sua dupla natureza militar e política foi publicamente transformada pelo primeiro-ministro na ressurreição do seu próprio Executivo. Despejou-se o titular da Defesa à mistura com outros que (afinal?) urgiam ser despejados e eis, do pé para a mão, um governo, “novo”, “fresco”, “combativo”. Pronto para tudo, que o governante está atento à felicidade dos governados e quis demonstrá-lo. Pronto para tudo e apto para tudo: não é verdade que veremos alguns dos seus membros defender politicamente um Orçamento de Estado que eles não fizeram, nem leram, mas do qual passam a ser os responsáveis, amanhã ou depois?

2. À primeira vista foi isto mesmo, um bom número político: houve bravos da plateia socialista, genuíno espanto dos compagnons de route e no tal país mais distraído – ou que intencionalmente se refugia na distração – ouviram-se hinos (que carecem de reciclagem) à habilidade de Costa. Apanhada pela minha própria surpresa na Madeira (onde Leslie, amavelmente, não impediu o quente mar, o sol e o grato usufruto de jardins encantados) concluí porém que quem arreda assim Defesa, Economia, Saúde, Cultura, emite alguns sinais de apreensão. O político António Costa leu os sinais vermelhos, mas uma boa percepção política das coisas não é o mesmo que saber domesticar uma governação que reclama poder de decisão e escolhas seguras, o que a bicuda circunstância geringoncional e as cedências a que obriga, têm quase sistematicamente impedido. Não é raro que o político e o governante descoincidam. Basta aliás reparar que enquanto o político gozava a vitória da sua jogada de antecipação, o governante era obrigado a pescar os seus novos reforços onde podia: nas suas próprias águas. Viva a gestão do dia a dia com amigos fieis.

3. Tudo isto acabará mal, vem nos livros, virá nas urnas. Poderá porém acabar pior – e este é hoje o meu ponto – quando a crescente arrogância do político, o abuso do tudo se permitir, ou a suas habilidades, comecem a parecer-se demasiado com o passado recente do PS. Exagero? Releia-se a espantosa carta de António Costa a Fernando Negrão, repare-se no seu tom quase ditatorial, pasme-se sobre o seu acinte, e depois perceber-se-á o que quero dizer quando evoco hoje o passado recente socialista. E sobretudo perceber-se-á ao que chegámos.

4. A necessidade de mimar a “cultura” que acode ao espírito de todo e qualquer político na véspera das “suas” eleições, precisava agora de melhor expressão e maior sedução. Vai ser preciso fazer barulho e fazer de conta: que há o dinheiro que não há, que há a consideração rendida do poder para com o universo cultural, que raramente há. No abrir de porta de um ano triplamente eleitoral a démarche do poder para com a cultura será mais viva, simulará ser mais generosa e parecerá estar mais atenta: a grande família cultural da esquerda tem de ser levada ao colo. Menos pelo que simboliza, mais pelo seu ilimitado poder mediático. Não sei o que desgosta mais: se testemunhar um poder político que se irá prestar a esta encenação em nome da caça ao voto; se ver alguma gente respeitável — e culta — participar no espectáculo com o elan e o empenho que se usa quando as coisas são sérias.

5. Os últimos serão os primeiros: dificilmente se discorda da escolha de João Gomes Cravinho para a massacrada Defesa. Tudo abona em seu favor, tudo parece recomendá-lo para o cargo -como num certo sentido tudo desaconselhava o seu antecessor. João Gomes Cravinho possui desde logo o entendimento da delicadeza da sua missão, oxalá possua igualmente a autoridade e a vontade política de remover o joio e salvar o trigo. O passado indigno que herda pô-lo-á à prova mais que os outros, dele espera-se esse “muito” que é a certeza de acabar com Tancos de uma vez por todas. Com isso redimindo quem deve ser redimido, punindo quem deve ser punido e desagravando o país, durante longos meses tomado por parvo.

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