Vejamos, o que aconteceu em Portugal desde 2011. O país faliu, obrigando a uma ajuda financeira. Entre 2011 e 2014, Portugal esteve sob intervenção externa, da União Europeia e do FMI. Em 2015, o PS fez pela primeira vez desde o 25 de Abril uma aliança com os partidos de extrema esquerda. O PSD reagiu com uma liderança que afirmou o partido como sendo de centro esquerda. Apareceram dois novos partidos, o Chega e a Iniciativa Liberal. Em cinco anos, o primeiro chegou aos 20% de votos e aos 50 deputados. Tudo isto aconteceu num período pouco mais longo do que o dos governos de Cavaco Silva. Foram demasiados acontecimentos, e de grandes dimensões políticas, para 14 anos. Em 2011, havia um país político. Hoje, em 2024, há outro muito diferente. Quase tudo é inverto e instável.
Nesse sentido, o que aconteceu na Assembleia da República entre terça e quarta feira desta semana é o resultado desse novo sistema político. Portugal é um país mais fragmentado politicamente, à semelhança de muitos países europeus. Em democracias, a fragmentação política causa combates parlamentares duros. É assim em quase todos os países europeus. Acontecerá o mesmo em Portugal. Habituem-se.
O Chega cresceu e quis testar o seu poder. Simultaneamente, quer forçar o PSD a clarificar-se: vai governar com o apoio do PS ao centro, ou do Chega à direita. E quer, obviamente, acabar com as linhas vermelhas impostas pelo PSD, para um dia poder estar no governo.
O PSD acredita nas virtudes da ambiguidade. Quer ser o partido charneira entre uma esquerda liderada pelo PS e a direita do Chega. Por isso, resiste à clarificação desejada pelo Chega e juntou-se ao PS na eleição para o Presidente da Assembleia da República. Mas isso significa que, neste momento, a estratégia do PSD é crescer à custa do PS, e não do Chega. O governo de Montenegro vai governar para atrair os votos dos grupos que tradicionalmente têm votado no PS, os reformados, e os funcionários públicos, sobretudo professores e médicos. Mas a todo o momento poderá mudar e aproximar-se do Chega para lhe tirar votos. Neste momento, o objectivo assumido é tirar votos ao PS.
Do PS ainda vêm sinais confusos em relação à sua estratégia para regressar ao poder. Parece acreditar que se for visto ao lado do governo de Montenegro nas políticas sociais, que restituem e aumentam rendimentos, impede a transferência de votos para o PSD e recupera eleitores perdidos. A experiência europeia diz que, normalmente, nas colaborações pontuais para beneficiar grupos de eleitores, os partidos de governo ganham mais do que os partidos da oposição.
Além disso, apesar de querer liderar as esquerdas, os socialistas não querem perder o centro. Por isso, fizeram um acordo com o PSD para a eleição do Presidente da Assembleia da República. O PS também mostrou que não sabe se lhe convém ter eleições nos próximos dois anos, antes de chegar o momento de Assis ser elevado a Presidente da Assembleia da República. Muitos falaram do exemplo do Parlamento Europeu para explicar o acordo de partilha da presidência da Assembleia da República. Mas não acrescentaram o óbvio: ao contrário de todos os outros parlamentos nacionais, o Parlamento Europeu não poder ser dissolvido. Por isso, a divisão da presidência funciona em Bruxelas. Só funcionará em Portugal se o PS tiver admitido, implicitamente, que esta legislatura deve durar os quatro anos.
O acordo do PS com o PSD não irritou apenas o Chega. Também irritou, e muito, as esquerdas radicais, do PCP, do Bloco e do Livre. Na sua primeira oportunidade, Pedro Nuno Santos teve um comportamento anti-geringonça. O que mostra que, além da divisão entre as direitas e as esquerdas, há outra divisão importante no parlamento: entre os partidos do velho (pré-2015) arco do governo, PS, PSD e CDS (ou AD), e os outros partidos que aspiram a entrar ou continuar nesse arco. Os primeiros gostavam de regressar a um sistema partidário bipolar, entre maiorias do PSD ou da AD e do PS, que definiu a política entre 1976 e 2015 e, brevemente, entre 2022 e 2024. Os segundos querem completar a ruptura iniciada em 2015, à esquerda, e reforçada pelo crescimento do Chega à direita.
A política portuguesa está num limbo entre a continuidade e a ruptura. Neste contexto, o poder politico é muito volátil e instável. De certo modo, todos os partidos têm razão. O Chega quer aumentar o seu poder, o PSD e o PS querem recuperar poder perdido.
Por fim, há um paradoxo interessante, e explicado em grande medida pelas cargas emocionais que voltaram à política portuguesa. Num momento de elevada incerteza, há muita gente que sabe quanto tempo vai durar o novo governo e até os resultados das próximas eleições. Fico quase sempre fascinado com a reação das pessoas à incerteza. Quanto mais incertos são os tempos, mas certezas têm. A maioria das pessoas não gosta de viver com incertezas.
Por mim, só tenho duas certezas. Não sei quanto tempo vai durar o novo governo. E não faço a mínima ideia sobre quem beneficiará eleitoralmente com eleições antecipadas. Hoje, todos os partidos acham que vão beneficiar. Quem disser que sabe quem ganha com eleições antecipadas não está a fazer análise política, está a exprimir desejos e uma certeza que não existe. Têm todo o direito, mas vale muito pouco.