Ainda sonho com isto passado tantos anos: sentada na secretária, o coração aos pulos, uma sensação desagradável, quase de asfixia, uma professora que se prepara para entregar os testes de matemática. Penso vagamente que não devia ter tanto medo, que é apenas um teste, não uma medida do meu valor enquanto pessoa. Mas o que vão os outros pensar de mim se falhar, se me revelar menos capaz do que a minha reputação? O momento aproxima-se, a respiração intensifica. Acordo. Tenho 31 anos e já não faço testes de matemática há mais de 10 anos. Sou médica e tenho uma carreira, uma vida, mas a ansiedade ainda prega partidas de mau gosto.

Esta semana, ao fazer um vídeo para o Instagram acerca da ansiedade de alto funcionamento apercebi-me que este fenómeno silencioso afecta mais pessoas do que se pensa. Há quem diga que somos uma geração fraca, de ansiosos, pouco preparados para a adversidade, aterrorizados pela possibilidade de cometer erros. Que se trata, no fundo, de uma falha de carácter. Mas será esta interpretação simplificada a resposta para um fenómeno disseminado na sociedade? Ou será a própria sociedade parte do problema?

A ansiedade de alto funcionamento, apesar de não existir como diagnóstico próprio, e sim como uma variante da ansiedade generalizada com um bom nível de funcionamento na vida diária, é uma condição negligenciada e uma verdadeira doença do século XXI. Num mundo em que performance perfeita e pressão passaram a ser os padrões, e em que exposição e acessibilidade são dados adquiridos, o que será mais natural do que se sentir no limite? Com uma fachada de auto-controlo e estabilidade, as pessoas afectadas por este tipo de ansiedade sentem-se internamente assoladas por constantes preocupações, medos e dúvidas. E ao contrário do cliché do neurótico paralisado, a perder o controlo, as pessoas com este tipo de ansiedade são profissionais capazes, cidadão exímios, familiares de confiança, sempre prontos a ajudar. Até ao momento em que o deixam de ser.

A caminhada até ao colapso está cheia de características e atributos aparentemente desejáveis. Rigor, ambição, auto-aperfeiçoamento, planeamento, disciplina e consistência. Mas estes traços, desprovidos de conta e medida, acabam por se tornar num pesadelo. Cada conquista é avaliada com base no que a sociedade considera ser um sucesso e não nas aspirações do indivíduo. Assim, atingida a meta, sente-se na mesma insatisfação e frustração. Bigger, brighter, better. Há sempre alguém a conseguir mais, a fazer melhor. Assim começa a sinfonia da autocrítica. E qualquer censura ou comentário que venha de fora alimenta o bicho interior. As comparações constantes com outras pessoas perpetuam uma sensação de dúvida. A síndrome do impostor surge. Se são reconhecidas e elogiadas, acham-se uma fraude; “se soubessem o que está por detrás”… Esforçam-se ainda mais por manter a fachada, sendo incessantemente produtivas, provando o seu valor, para os outros e acima de tudo para si mesmas.  A hipervigilância, tentando eliminar a possibilidade da falha, arrasa com qualquer hipótese de relaxamento. Assim cometem mais erros, a ansiedade intensifica-se, o controlo e o planeamento rigorosos não conseguem dar conta das responsabilidades e dos projectos que se acumulam. E mesmo assim, têm dificuldade em dizer não, mesmo quando sabem que há muito que passaram os seus limites.

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Mas de onde vem esta necessidade de se provar? Este medo de ser desmascarado? É impossível não enquadrar isto num mundo cada vez mais competitivo, com possibilidades incontáveis de comparação a toda a hora, em todo o canto e esquina. Se acordo às sete da manhã para ir dar uma corrida, há quem tenha postado uma foto às cinco da manhã. Se comprei o meu primeiro carro em segunda mão, há quem faça um reel com um bruto SUV. E a comparação continua, à distância de um clique.

Mas será justo deitar as culpas todas na crescente digitalização? Ou poderão estes comportamentos ter uma raiz mais profunda e longínqua, pelo menos na geração millenial que não teve o impacto das redes sociais num momento tão precoce?

Lembro-me bem dos meus tempos de escola. Havia expectativas bem claras. O ambiente reforçava-as ao longo de todo o caminho. Ser a melhor. A melhor em quê? Bem, naquilo que se pudesse ser e naquilo que tinha valor. Para aqueles sem o pedigree certo, ou sem uma almofada monetária adequada, ser o melhor significava uma coisa e uma coisa só: boas notas. Quando estas eram atingidas o problema tinha apenas acabado de começar. A tirania de mantê-las, ou enfrentar as consequências sociais de perder o lugar na hierarquia pela qual se tinha lutado com tanto afinco, ocupava todo o imaginário. O perfecionismo e a luta constante por padrões altos que se elevavam cada vez que se ficava mais perto de atingi-los tornava-se num estado rotineiro que, inevitavelmente, se transformou em anedonia.

O mais tardar, quando o corpo começa a dar sinais deste mal-estar profundo, quando as mil e uma maleitas que afectam o estômago, a cabeça e o sono se tornam insuportáveis, começamos a pensar que isto não pode continuar assim. Mas como sair deste círculo vicioso, desta roda de hamster que a nossa sociedade glorifica?

É preciso coragem e paciência. A chave passa por desaprender. Sim, mais uma vez ir contra a corrente daquilo que nos foi sempre dito. Não adianta aprender mais atalhos para alegadamente se conseguir optimizar ainda mais, há que desaprender toda uma mentalidade de se ver como um produto, uma coisa para ser usada. É fundamental repensar a visão pessoal de sucesso e produtividade. Aprender a aceitar a inevitabilidade da imperfeição, estabelecer limites e prioridades é o antídoto para o medo de falhar e a necessidade de provar que se é digno de respeito. Isto não é desistir de objetivos ou viver uma vida de anarquia, é apenas perceber que o descanso e ser falível são partes vitais de um todo que se chama vida.

O Zeitgeist é obcecado com a ansiedade. A ansiedade é algo admirável, a que se deve aspirar. É o combustível de start-ups de Silicon Valley e de bilionários de intenções duvidosas. Mas nem tudo o que reluz é ouro. Esta ansiedade que parece impulsionar o sucesso reduz-nos a carcaças desprovidas de força vital. É aquele meme da máquina automática sem luz, mas que ainda funciona. Mas será que apenas queremos funcionar? Acredito que podemos aspirar a mais que isso. Com perseverança e empatia por nós mesmos, paciência e confiança podemos passar da gaiola para a pradaria. Aprender a dizer não a um sistema de consumo que se serve a si mesmo pode vir a ser, de facto, o acto mais revolucionário dos nossos tempos.