Hoje é o dia em que nos mobilizamos para assistir em directo, ou para estarmos fisicamente presentes num momento grave, numa decisão complexa que os deputados vão ter que tomar, não apenas de acordo com a sua consciência, mas querendo interpretar a vontade daqueles que os elegeram e mandataram para serem seus representantes. Não vai ser uma votação fácil e julgo que muitos continuarão interiormente divididos.

Passei esta semana no hospital, onde a minha mãe foi mais uma vez internada em estado de grande fragilidade. Falo de um hospital público, de uma enfermaria de quatro camas, com outras três senhoras que padecem de diversos males, todos eles igualmente graves. Uma delas não dorme durante a noite e impede as outras de dormirem. Não faz de propósito, já se vê, mas tem causado um caos nas três velhinhas que estão tão acamadas como ela, e vejo os efeitos da exaustão que ela involuntariamente provoca em cada uma delas.

Esta senhora, que tenta a todo o custo desligar-se dos fios e tubos que a mantêm alimentada, hidratada e com os valores controlados, está sempre à beira de cair da cama e já por várias vezes foi preciso chamar mais do que dois enfermeiros ao mesmo tempo (sempre que possível novos e musculados) para a conseguirem reposicionar e acalmar. Durante breves instantes até chega a parecer calma, mas depois volta tudo ao princípio. Vira-se e revira-se, resmunga e grita, começa a puxar os fios, revolta-se contra a situação em que se encontra, inclina-se para se atirar da cama e lá voltam os enfermeiros em emergência, também eles exaustos e sem saberem o que fazer.

Tentam a todo o custo não amarrar a velha senhora à sua cama, por saberem que isso a faria sofrer ainda mais, mas por causa dela não há paz nem sossego para ninguém naquela enfermaria. Diria mesmo no piso inteiro. Nem sequer as visitas conseguem a tranquilidade desejada para estarem com os seus doentes queridos, mas isso não importa nada, pois quem mais sofre é quem está a ser visitado, não é quem visita.

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À luz daquilo que hoje está em discussão na Assembleia da República e vai ser submetido a votação nominal, e olhando aos argumentos dos que defendem a eutanásia, esta senhora deveria ser aconselhada a pedir a eutanásia. Já!

Se ela morresse não maçava mais ninguém. Não ocupava uma cama no Serviço Nacional de Saúde, não punha os nervos dos enfermeiros e assistentes operacionais em franja, não exigia uma atenção suplementar dos médicos, não gastava recursos, não pesava no Orçamento de Estado e não fazia falta porque já é velha, está muito doente e só causa problemas. Se fosse eutanasiada, as outras pacientes poderiam não ver grandes melhoras na sua saúde, mas poderiam finalmente dormir em paz.

Aliás, pensando bem, a senhora do fundo do quarto, que está sempre caladinha a observar, e raramente diz uma palavra, também já não está ali a fazer nada. Não tem visitas porque o marido ainda é mais velhinho do que ela e está muito doente. Ele liga-lhe todos os dias, é certo, e quase sempre acaba a chorar ao telefone com saudades dela, mas não a pode visitar e aparentemente não existe mais família. Se calhar esta senhora e o marido também podiam ser aconselhados a pedirem a eutanásia. Porque não? Sofrem os dois, cada um em seu lado, sentem o peso da solidão e a impotência para alterarem a sua realidade, já pouco ou nada contribuem para a sociedade, ela ainda por cima também ocupa uma cama, toma remédios, faz análises e usa meios de diagnóstico que têm custos elevados. Parecem-me presas fáceis para os militantes da eutanásia lhes virem contar ao ouvido histórias com fim ‘feliz’ de pessoas que decidem partir ‘em paz’ e ‘com dignidade’.

Sem estas duas senhoras, a caladinha e amorosa do fundo, e a agitada-zangada da frente, a enfermaria ficaria muito mais leve, os profissionais de saúde teriam muito menos desgaste e os custos com a saúde seriam infinitamente menores, porque cuidar desta gente velha e doente envolve muito dinheiro. Mas ainda restam duas naquele quarto. A que está na cama logo à entrada, e a minha mãe, que desta vez teve a sorte de ficar virada para a janela. E que tal pensar também numa morte assim ‘digna e assistida’, para cada uma delas? A vizinha de cama passa o dia sentada com problemas agravados por também ser diabética. Vai tendo visitas, mas olhando à sua situação e vendo os problemas que acumula, mais a precaridade em que certamente vive (e se percebe a olho nu), se calhar fazia-lhe bem descansar para sempre noutra dimensão. Bastava uma consultazinha com alguém de bata branca apostado em contribuir para as estatísticas da felicidade, angariando clientela para a eutanásia, e se calhar a senhora deixava-se convencer. Era menos uma.

Falta a minha mãe. Oitenta e dois anos, quase oitenta e três. Cúmulos e cúmulos de complicações. Coração cada dia mais fraco, diabetes a disparar, função renal a ameaçar falência, tudo a dar sinal de que atravessa o derradeiro ciclo da sua vida. Sofre e muito, mas como não é de se queixar e consegue manter o humor, quase nos engana a todos. Parece estar melhor do que realmente está. Se não fossem as análises, as ecos e os testes, bem como os cocktails químicos diários, até poderíamos viver na ilusão. Não vivemos e estamos todos muito realistas, a começar por ela própria.

Nesta fase, e após sucessivos internamentos, depois de tantas e tantas emergências médicas vividas nos últimos anos, o cansaço é extremo. Apetece descansar e deixar de a ver sofrer, não é?! Nesta lógica e porque também a minha mãe é utente do Serviço Nacional de Saúde, faz cirurgias e terapias, ocupa camas de hospital com frequência, tem usado ambulâncias do INEM em sucessivas emergências e tem sido motivo de preocupação para todos, médicos e não médicos, também ela configura a situação ideal para até nós, familiares e cuidadores, pedirmos eutanásia. Já viveu a sua vida, já trabalhou e contribuiu, mas agora é um peso para o Estado e um fardo para os que tentam estabilizar a sua saúde. Posta assim, nesta perspectiva perversa, consigo compreender os que defendem a eutanásia para os seus: matando-os, mata-se tudo. Morre a pessoa e matam-se as chatices, os custos, a angústia de ver sofrer, as horas perdidas em salas de espera, as consultas, tratamentos, internamentos e por aí adiante.

Podia ficar aqui a enunciar situações ‘ideais’ para pedir eutanásia, mas confesso que estou agoniada com o enunciado e repugnada com a possibilidade de ver estas quatro doentes desaparecer de um momento para o outro. Não consigo manter o registo e, por isso, páro. Páro pela repulsa, mas também páro porque me é imperativo falar da competência e compaixão que observo dia após dia, noite após noite, neste quadro de dores e sofrimentos.

Todos os médicos e profissionais de saúde que acompanham a minha mãe e as suas colegas de camarata, na enfermaria, têm sido inexcedíveis. Todos chegam para cuidar, para tratar, para reforçar a confiança e resgatar a esperança. Todos, sem excepção, estão única e exclusivamente interessados em ajudar a viver, estabilizando ou revertendo a doença, minimizando os sintomas, procurando o bem-estar e o conforto de cada uma, tentando devolver-lhes alguma qualidade de vida, dizendo palavras de consolo, calibrando remédios e terapêuticas que tornem a vida destas senhoras possível. Se, mesmo assim, tem sido difícil lidar com a realidade da fragilidade, nem quero imaginar como seria se, em vez de uma médica apostada em ajudar a nossa mãe a viver, tivessemos o azar de dar com um profissional de saúde mais interessado em ajudá-la a morrer.

Se em vez do diálogo salvífico que temos mantido ao longo destes dias e horas de grande aflição, tivessemos tido um interlocutor médico que nos pusesse a hipótese de a eutanasiar, isso teria sido aterrador, garanto. Por enquanto isso ainda não acontece, mas pode vir a acontecer se a eutanásia for legalizada. Ninguém pode ter dúvidas àcerca desta matéria, pois ao ser legalizada implicaria que uma nova casta de profissionais de saúde passasse a estar mais interessada em ajudar a morrer do quem em ajudar a viver. Espero nunca me cruzar com nenhum destes profissionais de bata branca, que sob a aparência de médico, me venha sugerir a morte e se ofereça para me ajudar a morrer. Apavora-me pensar nisto para mim, mas também para os meus.

Voltando à camarata que frequentei durante toda esta semana, falei das senhoras velhinhas que agora fiquei a conhecer, mas podia ir pelas enfermarias do país e facilmente falaria de centenas, milhares de homens e mulheres, jovens e crianças hospitalizados que atravessam momentos terríveis de sofrimento e desolação, que estão no auge da sua fragilidade, muitos deles confrontados com o sentido da sua vida, porque vivida no tempo opaco e erosivo da doença e internamento. Na lógica dos activistas pela eutanásia, as dores e padecimentos destes milhares de pessoas seriam facilmente resolvidos se houvesse quem se abeirasse das suas cabeceiras para lhes falar ‘amorosamente’ da possibilidade de acabarem com o sofrimento. Adoptando a estratégia de marketing que deturpa e vicia os argumentos, falando sempre de ‘morte digna’ e ‘em paz’, de um acto de ‘compaixão’, tudo seria muito fácil e eficaz, pois esta estratégia não só representa um uso abusivo destas palavras, como tem como alvos pessoas sempre frágeis e cansadas de sofrer, que gostariam de se libertar dos seus sofrimentos. Não necessariamente da sua vida, note-se, mas daquilo que as faz sofrer.

E esta é a rampa deslizante de que falam todos os que se opõem à legalização da eutanásia. O problema, a meu ver, é que nem sequer chega a haver espaço para deslizar muito porque o abismo é real, é brutal e é instantâneo. Hoje mesmo, a ser aprovada a eutanásia, estas quatro doentes e todos os velhinhos que estão internados, e não vão melhorar, passariam a ser elegíveis para obterem a sua guia de marcha; amanhã começariam a ser convencidos os mais jovens a quem os adeptos da eutanásia e do suicídio assistido aliciariam provando que ficar doente não é vida para ninguém, especialmente no auge da juventude; depois de amanhã os angariadores da causa já poderiam ocupar-se dos desesperados, dos deprimidos e dos mais isolados; a seguir viriam os que andam de muletas e cadeira de rodas, os tetraplégicos e paraplégicos, os cegos, os surdos e os mudos, os muito gordos ou muito magros, os que sofrem por não suportarem a sua auto-imagem, os que nasceram com alguma doença incurável, ou gene com defeito catalogado, e por aí adiante, num clima de desistência generalizada.

O pior é sabermos que nos países em que a eutanásia foi legalizada tudo acontece com uma rapidez incrível e uma facilidade terrível. Como o caminho é irreversível e não há volta atrás, é tenebroso pensar que também nós poderíamos estar a contribuir para transformar a sociedade (e a própria visão da Medicina!) numa cultura de descarte, em que apenas seriam dignos de viver os que se sentem em forma, os que não têm grandes imperfeições, os que trabalham e  contribuem (enquanto trabalham e contribuem, note-se), enfim os novos, os saudáveis, os inteligentes e os bonitos. A ideia de que certos médicos deixariam de se interessar pela nossa vida e pela vida dos nossos, aconselhando-nos a morte e oferecendo-se para nos matar é insuportável, insisto.

Claro que mais tarde ou mais cedo todos seríamos elegíveis para sermos eutanasiados. Deputados e filhos dos deputados, bem como os seus pais, familiares e amigos incluídos. É arrepiante, não é?!