Nem tudo o que uma lei diz está certo. Nem tudo o que é legal é bom. Uma lei cruel é e será sempre cruel, apesar de ser lei. E a maior crueldade da eutanásia é parecer uma coisa, mas ser outra. Sob uma aparência de bem, apelando à dignidade humana e à compaixão pelo outro, é apenas e só uma desistência horrível. Um passo irreversível. Um gesto irremediável, sem volta atrás.

Os que defendem a eutanásia procuram isto mesmo: a irreversibilidade e a possibilidade de escapar ao sofrimento. A certeza de que absolutamente tudo acaba ali e a pessoa não volta a pesar a mais ninguém. Nem a si própria, nem ao sistema, nem aos que estão próximos ou poderiam ser chamados a tomar o peso da sua vida.

Percebo as pessoas que, em cúmulo de sofrimentos físicos, morais ou emocionais, pedem a eutanásia. É impossível não compreender o desespero dos que sofrem, dos que se sentem sós, abandonados, excluídos, ‘encriptados’ no seu próprio corpo ou presos na terrível teia das suas dores. Seria completamente desumano ignorar o seu pedido.

Há, no entanto, uma crueldade maior do que não ouvir o grito do seu desespero:  validar o que sentem, oferecendo-lhes um fim. Não um fim para o sofrimento, note-se, mas um fim para a própria vida. A crueldade reside na desistência do outro e na maneira compreensiva e aparentemente bondosa ou salvífica com que se lhe dá a entender que realmente a sua vida não vale a pena. Digam o que disserem, não conheço crueldade maior do que a desistência do outro, especialmente quando esse outro está no auge do desânimo e da aflição.

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Legalizar a eutanásia será para sempre concordar com alguém particularmente atormentado ou desesperançado, mostrando-lhe inequivocamente que a sua vida é um fardo que não faz sentido nenhum carregar. Deve ser terrível ler esta confirmação no olhar do outro ou, pior ainda, ouvir da boca dos que estão à nossa volta, em especial dos profissionais de saúde, que é melhor desistir porque a nossa vida já não vale a pena.

Humanamente fomos dotados de uma espécie de ‘kit de sobrevivência’ que nos faz querer acima de tudo preservar a vida. É por isso que em teatros de guerra há tantos gestos heroicos de soldados que carregam aos ombros outros soldados que morreriam no campo de batalha se fossem lá deixados. É por isso que ninguém tem o impulso de dar um empurrão para a frente a quem está inclinado a atirar-se de uma ponte ou para uma linha do comboio. É por isso que uma esmagadora maioria de pessoas cuida, resgata, acompanha e ampara doentes de todas as idades, mesmo sem serem profissionais de saúde e até sem terem qualquer tipo de gratificação.

Percebo os que pedem eutanásia porque sofrem, mas não percebo que não lhes seja dada outra resposta. Os cuidados paliativos existem e são eficazes por serem uma linha avançada e sofisticada da Medicina. Sou testemunha disso por ter passado horas a fio à cabeceira de doentes incuráveis ao longo de vários anos. Começar pela eutanásia, antes de legislar sobre cuidados paliativos e antes de estarem garantidos para todos, é pior do que começar uma casa pelo telhado. É fazê-la também sem chão e colocar os alicerces num pântano.

Leio artigos pró e contra e não consigo deixar de me identificar com os que lutam pela vida. Concordo inteiramente com Tolentino Mendonça, quando diz que a verdadeira missão dos políticos é “o suporte infatigável à vida”. E também sou como a Inês Teotónio Pereira, que pede que a abracem e não a matem se algum dia a virem velhinha e frágil, angustiada ou desanimada por se sentir pesada e inútil.

A crueldade ensina-se e aprende-se com grande eficácia a partir de leis como aquela que os políticos defensores da eutanásia pretendem aprovar. Basta colocar na letra da lei que matar ‘com dignidade’ e ‘por compaixão’ é permitido, e deixa de ser punido, para que as próximas gerações sintam que estão no direito de decidir sobre as suas vidas e as vidas dos que lhes pesam ou lhes parecem já sem interesse e sem sentido.

Como a eutanásia também requer ciência e profissionais de saúde capazes de administrar com rigor as doses necessárias de fármacos, é fácil perceber que aqui não existe gratuidade de espécie nenhuma. A eutanásia também é um negócio. E se, por um lado, os clientes não podem repetir a experiência nem podem vir queixar-se ou pedir um livro de reclamações, por outro lado o negócio assenta na angariação de cada vez mais clientes, com critérios cada vez mais permissivos.

Dar a cada um o poder de decidir sobre a vida, a morte e as doses de sofrimento que (não) querem para si é tentador, reconheço. Mas é uma tentação que rebenta com as fronteiras éticas e os limites humanos, destruindo o princípio fundamental e inegociável da dignidade da vida. De toda a vida. Dos fortes e dos fracos, dos doentes e dos desesperados, dos novos e dos velhos. E é um poder que até pode começar por permitir tirar a vida aos que já não lhe dão qualquer valor, mas mais à frente vai justificar a morte dos que querem morrer, mas também aliviar a consciência dos que desejam que alguém morra para que a sua existência seja mais leve e fácil.

Sob uma aparência de bem, insisto, há possibilidades ilimitadas de crueldade nesta lei cruel.