Na reabertura dos trabalhos parlamentares o deputado André Ventura lançou mais uma diatribe contra os ciganos. A propósito de um crime eventual e alegadamente cometido por um deles — o espancamento até à morte de um agente da PSP —, lançou o anátema sobre toda a comunidade cigana. Foi interrompido e advertido pelo Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, que lhe lembrou, e muito bem, que “não há atribuições colectivas de culpa em Portugal.” Esta advertência foi aplaudida por todos os deputados, excepção feita aos do Chega, e foi, em muitos casos, aplaudida de pé, para melhor frisar a concordância do parlamento com o que o seu presidente dissera.  Como Augusto Santos Silva estava carregado de razão, esse aplauso quase unânime ecoou na sociedade portuguesa e muita gente veio a público louvar essa intervenção e perfilhar aquele reparo político e pedagógico.

Isso foi especialmente evidente entre as pessoas de extrema-esquerda que encheram o facebook com os seus louvores a Santos Silva e que, como sucedeu com Carmo Afonso, por exemplo, escreveram artigos nos jornais repetindo, muito acertadamente, que não há atribuições colectivas de culpa em Portugal. Curiosamente, algumas dessas pessoas são as mesmas que, nos últimos cinco anos, têm defendido e, até, exigido que os portugueses peçam desculpa por actos praticados por outros portugueses em contexto colonial e num mais ou menos longínquo passado. Luminárias dessa esquerda decolonial ou pós-colonial — Miguel Vale de Almeida, por exemplo — que, em Abril de 2017, exigiam a Marcelo Rebelo de Sousa que pedisse desculpa pelo envolvimento de portugueses no tráfico transatlântico de escravos, vieram agora corroborar Augusto Santos Silva e sancionar a ideia de que não há atribuições colectivas de culpa em Portugal.

A incoerência é manifesta, mas muito reveladora dos critérios ou falta deles, em que as cabeças de extrema-esquerda vão boiando. Não há, de facto, atribuições colectivas de culpa no nosso país — nem noutros —, ou seja, Augusto Santos Silva está carregado de razão e André Ventura não tem nenhuma. Mas a afirmação do Presidente da Assembleia da República é tão válida para o presente como para o passado. A culpa do comportamento brutal e ilegal de muitos portugueses e de algumas autoridades superiores ou subalternas para com as populações locais de várias partes do império português, das Molucas ao Amazonas, cabe por inteiro a essas pessoas e autoridades que o praticaram e que foram muitas vezes advertidas e condenadas pelo poder central, e não ao português seu contemporâneo que amanhava a terra no Minho ou no Algarve, e muito menos aos actuais portugueses.

Do mesmo modo, a culpa dos crimes de guerra que estão a ser praticados na Ucrânia não é do vulgar cidadão russo. A culpa também não é das gentes do PCP que, simpatizando com a Rússia, à qual estão afectivamente ligadas por décadas de subordinação e de amor, tentam suavizar ou relativizar os crimes dos seus soldados e dos seus dirigentes políticos — isso é, apenas, seguidismo e má-fé. A culpa é das bestas humanas que cometem esses crimes, e daquelas que, conhecendo os factos e os códigos legais que os proíbem e punem, lhes dão cobertura, com o execrável Putin à cabeça. Espero que seja possível levar essas bestas a tribunal e castigá-las como merecem, e lamento que já não esteja na nossa mão fazer outro tanto às muitas bestas de séculos passados cujos crimes ficaram impunes. Mas faço votos, também, para que um ou outro seguidor do pensamento de esquerda decolonial ou pós-colonial perceba, finalmente, que não pode usar um duplo critério que lhe permite verberar muito adequadamente André Ventura, por generalizar culpas, e aplaudir incoerente e indevidamente Miguel Vale de Almeida quando ele faz exactamente a mesma coisa.

PS: Quando terminava este artigo li que um juiz de instrução de Matosinhos, Miguel Aranda Monteiro, decidiu levar a julgamento a historiadora Maria de Fátima Bonifácio por alegado racismo e aplicou-lhe uma medida de coacção: termo de identidade e residência. Está em causa um artigo escrito pela minha colega em 2019, artigo esse que provocou, na altura, um grande clamor público e suscitou queixas de várias pessoas e do SOS Racismo contra ela. Essas queixas tiveram, agora, acolhimento, pois, segundo o referido juiz, Maria de Fátima Bonifácio teria ofendido, rebaixado e inferiorizado africanos e ciganos “em razão da cor da sua pele e origem, pertença cultural ou étnica”. Eu estou certo de que não foi nem é a cor da pele que incomodou e incomoda Maria de Fátima Bonifácio. Parece-me, também, com base na notícia que agora li, que o juiz se terá focado nesse aspecto — pois foi para aí que o SOS Racismo e outros queixosos apontaram as suas lanternas —, e não no verdadeiro assunto do artigo da historiadora, isto é, as quotas étnico-raciais de acesso ao ensino universitário e a injustiça de uma eventual medida que as estabeleça. Julgo, ainda, que, ao contrário do que o juiz considerou, Maria de Fátima Bonifácio não tinha como propósito ofender nem tinha consciência de que o seu texto poderia enquadrar-se em conduta proibida e punida por lei criminal.

Não concordo com as generalizações de Maria de Fátima Bonifácio sobre africanos e ciganos, e escrevi-o num artigo que publiquei nessa altura, mas discordo igualmente de um juiz que pretende julgá-la por essa razão. Se isto for avante, e se a minha colega historiadora for condenada, será um golpe profundo na liberdade de expressão no nosso país e um importante triunfo da cultura woke e do seu expoente institucional, o SOS Racismo, cujo mais conhecido dirigente, Mamadou Ba, tem espalhado ódio às pazadas e insultado pública e impunemente muita gente.

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