A invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro deixou-nos a todos estupefactos. Porém, e depois desse primeiro acometimento de espanto ter passado, deveríamos ter ficado assim tão surpreendidos? Após quatro anos de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, seria de esperar que pouca coisa nos surpreendesse. Os sinais de alerta já lá estavam. Se há algo que podemos afirmar sobre Trump, é que ele não tem filtros. Trump é transparente. O presidente não só nunca se tinha comprometido com uma transferência pacífica do poder como tinha dito, nas últimas semanas e meses, aos seus quase 90 milhões de seguidores no Twitter, que a eleição havia sido roubada.

O que se revelou francamente extraordinário foi a falta de segurança em torno do Capitólio, precisamente no dia em que o Congresso iria ratificar a eleição de Joe Biden como o próximo Presidente dos Estados Unidos, particularmente quando, quer o FBI, quer o Departamento de Segurança Interna, tinham já conhecimento de um grande número de trocas de conversas online que faziam referência a uma possível insurreição.

Em muitos aspectos, podemos dizer que se tratou de um fim apropriado para um presidente que desrespeitou o seu juramento de defender e proteger a Constituição da América. O seu legado para a história será constituído pela insurreição de Capitol Hill e pelos dois processos de destituição de que foi alvo. Lembro-me das palavras de Voltaire no seu ensaio de 1765, Questions sur les Miracles: “Aqueles que nos fazem acreditar em absurdos, podem fazer-nos cometer atrocidades.”

Naquela data histórica, Trump convocou os seus apoiantes a reunirem-se em Washington para “acabar com o roubo”. Mais tarde, quando pressionado para que dissesse à multidão para voltar para casa, continuou com o mesmo discurso: “Eu conheço a vossa dor. Roubaram-nos a nossa eleição. Tivemos um número esmagador de votos e todos sabem disso…. Vocês são muito especiais e amamos-Vos a todos”. Depois disto dito, não é de admirar que o Capitólio tenha sido invadido por pessoas visivelmente perturbadas por uma campanha de desinformação, da qual este foi o derradeiro assalto.

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Podemos retirar deste acontecimento duas lições importantes Primeiro, tudo isto veio provar o poder da liderança. As palavras de um líder têm consequências enormes. O maior problema deste presidente é que nunca teve noção ou, francamente, não deu importância às consequências das suas palavras. Não tenho dúvidas de que muitos dos que engrossavam aquela multidão acreditavam piamente que eram verdadeiros patriotas. Uma sondagem do YouGov, levada a cabo logo após estes acontecimentos, veio mostrar que 45% dos republicanos continuavam a apoiar o que aconteceu no dia 6 de janeiro. Estas pessoas haviam sido continuamente enganadas e desinformadas nos últimos dois meses, ou melhor, nos últimos quatro anos. Com toda esta desinformação amplificada pela câmara de eco das suas bolhas nas redes sociais e nos meios de comunicação social, deveremos regozijarmo-nos por nesse dia apenas cinco pessoas terem encontrado o trágico fim das suas vidas.

Os Big Tech rapidamente saltaram para a arena da indignação e da condenação. O Twitter, seguido rapidamente pelo Facebook, Instagram, YouTube, Snapchat e outros baniram as contas do presidente Trump e milhares de outras contas do grupo de extrema direita Q-Anon que tinham espalhado as teorias de conspiração mais injuriosas. Quando os partidários de Trump e os apoiantes de vários grupos da direita alternativa (Alt-Right) tentaram reemergir numa outra rede social de nome Parler, tanto a Apple como o Google baniram de imediato a aplicação do seu servidor.

Chegamos, pois, à segunda lição do dia: o tremendo poder dos Big Tech e das redes sociais. Donald Trump, que, por ser presidente, tinha acesso ex officio aos meios de comunicação convencionais, optou por governar pelo Twitter. No decurso do primeiro processo de destituição de que foi alvo, em dezembro de 2019, ele fez uso do Twitter mais de 600 vezes – uma média de 58 vezes por dia. Hoje em dia, muitas pessoas, se não a maioria, assumem como as suas principais fontes de informação as páginas das redes sociais. Os jornais e até mesmo a TV já não têm o papel preponderante que costumavam desempenhar. Twitter e Facebook tornaram-se a praça pública da era moderna, onde as pessoas se reúnem para discutir, trocar e validar os seus pontos de vista. Em muitos sentidos, são agora serviços públicos.

Encontramo-nos perante um desafio civilizacional: de que forma podemos regular estes gigantes das redes sociais? Como é óbvio, qualquer empresa privada é livre de recusar os seus serviços a qualquer utilizador. Isto deverá ser esclarecido, referido de forma transparente nos seus “Termos e Condições” e aplicado de forma consistente. Na verdade, pesquisei os “Termos e Condições” do Twitter e similares e fiquei esclarecida que as contas do presidente dos Estados Unidos e de muitos outros, que ainda estão activas e em bom funcionamento, deveriam ter sido canceladas há muito tempo.

Todavia, tribunais e governos há muito que reconheceram que o acesso aos serviços de utilidade pública é uma necessidade básica na sociedade moderna. Mas o dever de servir o público da referida “utilidade” não é absoluto. Qualquer empresa de serviços públicos pode negar o seu serviço por uma boa causa, principalmente, a do não pagamento. No entanto, e até onde sei, não houve qualquer tipo de regulamentação em relação a estes quatro gigantes que dominam a esfera pública das tecnologias de informação.

Precisamente por serem serviços públicos, considero alarmante que alguns executivos da tecnologia de informação tenham o poder de silenciar o presidente dos Estados Unidos e de um grande número dos seus apoiantes. Uma coisa é deplorar o presidente e tudo o que ele representa, outra é tirar-lhe a sua plataforma de escolha.

Por acaso desta vez acertaram, mas poderiam facilmente não ter acertado! Embora alguns tenham argumentado que não foram as palavras do presidente que levaram a que um viking em tronco nu se passeasse pelos corredores do Congresso ou a que uma multidão clamasse pelo enforcamento do vice-presidente Mike Pence, este é um argumento que infelizmente não me convence. Era previsível e sabido de antemão que alguns dos partidários obstinados do presidente estavam a organizar uma insurreição.

Na sociedade moderna em que vivemos, onde as redes sociais desempenham um papel de tamanha importância nas questões sociais e políticas, quem devia são os árbitros legítimos da liberdade de expressão? Deveremos deixar essa função nas mãos de alguns homens poderosos como Mark Zuckerberg e Jack Dorsey? Categoricamente, não. É, em minha opinião, extremamente perigoso para qualquer democracia liberal dar esse poder a Sylicon Valley, cujo lucro é o critério definitivo para o estabelecimento das regras da liberdade de expressão.

O Twitter ganhou biliões com Donald Trump durante anos e, quando o navio começou a afundar, decidiram reavaliar a sua política. O dia 6 de janeiro foi a gota de água. Sabiam muito bem que, desse dia em diante, teriam de lidar com um Congresso democrático e com uma presidência democrática durante os próximos quatro anos e que teriam toda a vantagem em agir “cooperativamente” com o programa democrático. Por outro lado, a pressão que se fazia sentir por parte dos seus anunciantes, o seu ganha-pão, era cada vez maior. Ora bem, a decisão que tomaram não foi, de facto, motivada pelo patriotismo ou por preocupações como a do incitamento à violência, mas sim pelo lucro e pelo medo em relação ao futuro das suas empresas.

Pois bem, como regularemos, então, estas grandes empresas que vieram dominar as nossas vidas? Muitos comentadores têm vindo a pedir a dissolução desses monopólios, de forma semelhante à que aconteceu com a Standard Oil em 1911 e com a AT&T nos anos 80. Contudo, este é um processo demorado, por isso não pode ser tido em conta como uma solução de curto prazo. O que poderemos fazer agora?

Estas empresas precisam de ser controladas por um regulador independente, que aplique de forma clara e consistente as regras do jogo. Isto também não é assim tão fácil quanto pode parecer à primeira vista e levanta mais questões do que respostas. Deverá ser um regulador americano ou internacional, já que estas plataformas são globais? Devia seguir apenas a lei americana ou adaptar-se às leis soberanas de outros países? Deveremos combater o incitamento à violência em ditaduras onde uma mudança de regime seria bem-vinda? Quais deverão ser os critérios para se bloquear a conta de alguém? O incitamento à violência ou à revolta é claramente um motivo para banir alguém. Já o que chamamos de discurso de ódio é mais questionável e vago. O que constitui discurso de ódio hoje, algo que divide imensamente a esquerda e a direita, não é fácil de definir. Temos constatado a forma como guerreiros da justiça social mais liberais e de esquerda têm vindo continuadamente a expandir os limites do discurso de ódio de forma a incluir qualquer coisa que considerem ofensiva. Será que se deveria restringir a liberdade de expressão de alguém simplesmente porque ofendeu outra pessoa? Tenho sérias dúvidas acerca disto. Na verdade, irei longe o suficiente para afirmar que, se decidirmos censurar as pessoas desta forma, a nossa democracia liberal está em risco. Depois de finalmente estabelecidas as regras do jogo – tarefa nada fácil -, é preciso que haja transparência e a possibilidade de inspeccionar a sua aplicação e permitir recurso se for caso disso. Isto deixa ainda em aberto em que circunstâncias e que instâncias  poderá qualquer reparação legitimamente ocorrer.

Os legisladores têm muito trabalho à sua frente. Quando, em 2018, Mark Zuckerberg foi chamado para uma audiência no Congresso, alguns senadores pareciam estar a anos-luz de possuírem qualquer tipo de literacia digital. A UE tem sido mais rigorosa na aplicação de instrumentos de contenção ao Facebook do que os EUA, principalmente quando se trata de questões de privacidade. Há um grande número de áreas que precisam de regulamentação urgente como: data mining, privacidade, ingerência em processos eleitorais, divulgação de perigosas teorias da conspiração, isto para citar apenas algumas. A invasão do Capitólio e o cancelamento consequente de milhares de contas de redes sociais trouxeram à tona a questão da censura. A democracia liberal tem por base o direito fundamental à liberdade de expressão. Este direito fundamental não pode ser deixado nas mãos de alguns CEO das empresas de tecnologia da informação.

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