É atribuída ao quase desconhecido pensador Quilão, citado como um dos Sete Sábios que viveu no século VI a.C., a frase: “De mortuis nil nisi bene”. Numa tradução livre: “Não se deve falar dos mortos senão bem”.

Esta máxima trouxe-me à memória o comunicado publicado pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa a propósito do falecimento de Otelo Saraiva de Carvalho: “é ainda cedo para a História o apreciar com a devida distância. No entanto, parece inquestionável a importância capital que teve no 25 de abril, o símbolo que constituiu de uma linha político-militar durante a revolução, que fica na memória de muitos portugueses associado a lances controversos no início da nossa Democracia”.

Talvez seguindo esse princípio, o político formado em Direito caracteriza de forma demasiadamente ligeira e passageira o outro lado dessa personalidade: “Afastado do poder na sequência do 25 de novembro de 1975, viria a ser considerado, pela Justiça, envolvido nas FP-25, condenado e amnistiado”.

Por este andar da discussão nunca chegaremos ao ponto de escrever a História de Portugal, mas apenas de criar “santos” e “diabos”, dependendo do ângulo ideológico que se analise a vida e obra de um líder político.

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A controversa personalidade de Otelo Saraiva de Carvalho deveria ajudar-nos a reflectir sobre o seu trajecto político, compreender como é que o homem que teve uma importância fulcral na revolta militar de 25 de Abril de 1974 se transformou num candidato a ditador e, depois, no dirigente de uma organização terrorista que matou inocentes, realizou dezenas de atentados a tiro, assaltos a bancos, etc.

No romance “Os Irmãos Karamazov”, do escritor russo Fiodor Dostoevskyi, Ivan, falando com o seu irmão, monge Andrei, exclama “que a harmonia do mundo não vale as lagrimazinhas de uma criança”. As FP-25 assassinaram crianças e seria sempre bom ter isto presente para aqueles que acham que os fins justificam os meios.

Mas muitos dos defensores das actividades de Otelo Saraiva de Carvalho responderão que o facto de ele tornar possível o 25 de Abril é muito mais importante do que as suas acções nas FP-25 e alguns até atribuem estas últimas a “ingenuidade política”.

Segundo essa lógica, encontram-se justificações para tudo. Algumas justificações fazem-me lembrar aqueles que, na extrema-esquerda, “reconhecem” que Lenine ou Estaline mataram uns milhões de pessoas, mas justificam-nos com a “construção do socialismo”, o “futuro radioso da humanidade”, etc. E claro que também me fazem recordar justificações de nazis do tipo: “Adolfo Hitler resolveu o problema do desemprego na Alemanha”.

Não quero com isto comparar Otelo Saraiva de Carvalho aos citados ditadores embora, a dada altura, sonhasse ser o “Fidel Castro da Europa”. Felizmente para todos nós tal coisa não aconteceu.

Com tudo isto quero dizer que a História não pode ser feita com base numa selecção de factos, mas em todos os factos já conhecidos e que se venham a conhecer.

Qualquer figura histórica, principalmente as que protagonizam momentos cruciais na História, não deve ser julgada através de ângulos puramente políticos e ideológicos. E muito menos sectários, como acontece frequentemente em Portugal. Por exemplo, para o Partido Comunista Português, Álvaro Cunhal e outros dirigentes dessa força politica só podem ser avaliados como heróis da luta antifascista, mas nunca como políticos que lutaram contra uma ditadura de extrema-direita com vista a impor uma ditadura de extrema-esquerda.

Já políticos como Sá-Carneiro, Francisco Pinto Balsemão, Magalhães Mota e outros não podem entrar na História apenas como deputados da Ala Liberal da Assembleia Nacional do Estado Novo, mas como políticos que deram um sério contributo à consolidação da democracia em Portugal.

Claro que colar rótulos é bem mais fácil do que estudar e escrever História, pois esta última ciência não utiliza apenas o preto e branco na caracterização dos acontecimentos, mas um amplo leque de cores para a tornar mais precisa.

Quanto ao momento para iniciar o escrever da História do 25 de Abril e do período revolucionário, a hora já chegou, embora seja ainda necessário desvendar muitos mistérios escondidos nos arquivos dos partidos políticos portugueses e dos países que participaram activamente nesses processos.