A palavra chave é “englobamento”. Para a maior parte dos cidadãos não diz muito, para não dizer que não diz nada. Mas mais tarde ou mais cedo vai dizer: quando muitos começarem a receber a conta no IRS. Primeiro de mansinho, depois à medida das necessidades de um Estado cada vez mais insaciável.
Mas voltemos ao “englobamento”, pois não é muito difícil explicar o que está para acontecer. Há 30 anos, quando foi introduzido o IRS (os mais velhos recordar-se-ão que antes existiam os “imposto profissional” e “imposto complementar”), houve alguns rendimentos que ficaram sujeitos às taxas progressivas, como os rendimentos do trabalho, e outros que ficaram sujeitos a taxas fixas, ou “liberatórias” (outro palavrão de que a maior parte dos cidadãos não conhece o significado), como os juros dos depósitos bancários.
Como o passar dos anos a lista dos rendimentos que estavam ou não abrangidos por estas taxas “liberatórias” foi variando, mas aquilo que se pretende agora é que todos passem a contar para efeitos de IRS. Desde sempre que a esquerda radical teve como objectivo o englobamento, tanto que o PCP (nessa altura ainda não havia Bloco) tentou que o Tribunal Constitucional se pronunciasse pela inconstitucionalidade dessas taxas “liberatórias”. Não teve sucesso, pelo que elas mantiveram-se até hoje.
Mas chegados a este ano da graça de 2019, início de mais uma legislatura com governação do PS, eis que no programa do Governo surge a vontade de proceder ao dito “englobamento”, sendo que Bloco e PCP não só aplaudem como exigem que ele se faça depressa e com poucas excepções.
O discurso, naturalmente, é virado contra “os ricos”. Supostamente haverá muita gente a viver de acções e de rendas e a pagar poucos impostos, ao contrário de quem vive do seu trabalho. Catarina Martins não se cansa de repetir esta lengalenga de que só “os ricos” seriam penalizados.
Acontece que a realidade é bem diferente – no último debate quinzenal Cotrim Figueiredo levou o caso de alguém que, vivendo com o novo salário mínimo e tendo uma casa arrendada por apenas 50 euros, passaria a pagar mais impostos por simples efeito do “englobamento”. O exemplo embaraçou tanto o primeiro-ministro que este o desvalorizou como simples exercício de especulação, acabando por admitir que o princípio do “englobamento” não pode ser universal.
Exercício de especulação ou não, o objectivo é claro. Hoje o rendimento dos depósitos bancários (escassos, pois são baixas as taxas de juro), das acções ou do mercado de arrendamento pagam uma taxa fixa de 28%. Se esses rendimentos passarem a ser somados aos rendimentos do trabalho ou às pensões, no limite podem passar a pagar 53% de imposto. Isso mesmo, leu bem: a taxa do imposto pode saltar de 28% para um máximo de 53%.
Já sabíamos até que ponto o Estado português é insaciável. Também já conhecíamos a manha socialista de ir fazendo subir a carga fiscal – que está em máximos históricos – mesmo sem mexer na taxas dos impostos. Agora o que está em causa com o “englobamento” é um sinal de uma sofreguidão sem nome que só pode acabar mal, e por acabar mal quero dizer acabar em mais evasão fiscal, mais injustiça fiscal e mais sinais errados aos agentes económicos.
Mais evasão fiscal porque as taxas “liberatórias” não foram criadas por um capricho do legislador – foram criadas porque o capital é mais móvel do que o trabalho, pelo que o mais natural é que quem tem poupanças as transfira para países onde o regime seja mais favorável. Isso acontecerá sobretudo entre os que tiverem mais rendimento e terá como efeito colateral tornar ainda mais difícil o financiamento da nossa economia.
Mais injustiça fiscal precisamente porque serão os que têm mais rendimento que mais facilmente encontrão soluções para escapar ao “englobamento”. Não é difícil imaginar, por exemplo, que quem tenha propriedades arrendadas as coloque em nome de empresas, já que estas nunca pagarão tanto em impostos (apesar de na Europa só em França as empresas pagarem mais impostos do que em Portugal). Já os pequenos ficam à mercê desta discricionariedade do “englobamento”. Pior: o “englobamento” também significará que aquilo que é descontado sobre os rendimentos dos salários é recalculado, em alta, no final do ano, o que significa que dois trabalhadores com o mesmo salário bruto receberão salários líquidos diferentes porque um fez poupanças e tem rendimentos e o outro preferiu gastar tudo em viagens e automóveis, por exemplo. Na prática quem tiver rendimentos sujeitos a “englobamento” dificilmente conseguirá calcular com rigor o valor de um aumento salarial que receba, pois não sabe que salto sofrerá no IRS quando chegar o acerto do ano seguinte.
Finalmente o “englobamento” penaliza quem poupou – e em Portugal são cada vez menos aqueles que poupam alguma coisa – e pode penalizar ainda mais quem investiu. Isso é especialmente verdadeiro no mercado do arrendamento, um mercado que geringonça tratou de destruir de forma matreira e sistemática nos últimos quatro anos, e que agora pode matar de vez. Na verdade que confiança para investir pode existir quando não se sabe se o imposto a pagar é de 28% ou pode chegar a 53%? Nenhum negócio sério, não especulativo, tem margens que suportem esta incerteza – o que significa que para viver com esta incerteza o Governo dá mais uma contribuição para tornar o mercado do arrendamento ainda mais especulativo do que ele já está.
(Infelizmente há professores de economia que escrevem sobre este tema sem perceberem que, com o englobamento, a taxa do imposto a pagar sobe automaticamente seja qual for o escalão de imposto do contribuinte. Podem por isso escrever que só os agregados familiares que estão no escalão que paga mais de 28,5% vão pagar mais impostos. Está-se mesmo a ver que nunca estiveram numa empresa, nunca tiveram de pagar salários e de calcular quando receberiam líquido os seus funcionários depois dos descontos para o Estado, ou seja, nunca consultaram as tabelas de retenção na fonte do IRS, bem mais complexas do que a lista dos escalões do imposto. Enfim, para dizer que só os ricos vão pagar mais vale tudo, mesmo desconhecer o Código do IRS e como se aplica na prática.)
Não tenhamos ilusões. O “englobamento” estava no programa eleitoral do PS, está no programa do Governo, e seja qual for a forma como se concretize representará sempre um aumento de impostos. Podem vendê-lo de muitas maneiras, mas afectará sempre a poupança e o investimento. E sendo certo que em alguns países da Europa há “englobamento” fiscal, também é verdade que nesses países o mercado imobiliário não está tão sobrecarregado de impostos como o nosso já está (IMI, IMT e ainda o famoso “imposto Mortágua”).
Na anterior legislatura o PS também tinha prevista reintroduzir o imposto sucessório, mas depressa percebeu que isso teria mais efeitos negativos do que positivos, levando nomeadamente à fuga de capitais. O imposto sucessório acabou assim por ser esquecido. Será que desta vez vai acontecer o mesmo ao “englobamento”? Suspeito que não, e suspeito que não por uma razão muito simples: sem nenhuma reforma do Estado e com o descongelamento das carreiras e salários, o “monstro” recomeçou a crescer. E o “monstro”, como bem sabemos, é insaciável.
Portanto, já sabem: vêm aí mais impostos. Uns vão dizer-nos que serão “para os ricos”, mas em Portugal os remediados já são ricos para a Autoridade Tributária. Outros chegarão em nome da defesa do Ambiente e da Saúde.
O socialismo, como dizia Margaret Thatcher, é assim: dura até acabar o dinheiro dos outros. E os outros somos nós.
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