Há pessoas que gostam de pôr os outros no inferno, mas eu prefiro levá-las para o céu porque, mais do que ministro da justiça de Deus, procuro ser agente da sua misericórdia. Por isso, nestas vésperas da Páscoa, proponho-me reabilitar Judas Iscariotes, o apóstolo traidor, que a opinião pública, mas não a Igreja, condenou às profundezas do inferno.

Judas é, talvez, a mais enigmática personagem da paixão e morte de Jesus Cristo. É sabido que o mestre tinha um grupo numeroso de discípulos porque, numa ocasião, enviou setenta e dois, em missão de evangelização (Lc 10, 1). Para além destes, seguiam-no algumas santas mulheres (Lc 8, 1-3) e os apóstolos (Mc 3, 13-19), que eram os seus mais imediatos colaboradores. Estes últimos eram doze, e viviam com Jesus em comunidade, ao jeito de uma família nómada. Nalguma ocasião, Cristo dirigiu-se a eles com especial ternura, chamando-lhes “filhinhos” (Jo 13, 33), mas talvez só João fosse adolescente. Tanto quanto era próxima a relação de Jesus com Judas, maior é também a gravidade da sua traição, que levou à condenação de Cristo à morte na cruz.

Sem justificar a traição de Judas, interessa compreender a sua actuação, por vezes analisada de forma pouco objectiva, porque feita apenas à luz dessa sua acção.

O Iscariotes foi escolhido directamente por Cristo, para ser seu apóstolo: “não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi a vós” (Jo 15, 16; 6, 70-71). Quer isto dizer que Jesus de Nazaré falhou na escolha deste discípulo, uma vez que foi o traidor?! De modo nenhum, porque a vocação cristã é um chamamento e não uma predestinação: os escolhidos não perdem a liberdade, muito embora se lhes garantam as graças necessárias para a realização da tarefa que lhes é pedida.

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Diga-se, em abono de Judas, que ele não só foi chamado por Cristo, como correspondeu com generosidade a esse apelo, deixando tudo e seguindo o Mestre (Mc 10, 28). Nem todos tiveram esse heroísmo (Mt 19, 16-22) e, por isso, é de justiça reconhecer ao Iscariotes o mérito da sua inicial entrega. Mais ainda, manteve-se fiel a essa sacrificada vocação durante todo o tempo do ministério público de Jesus de Nazaré, o que tem também muito mérito, porque outros houve que não perseveraram a seu lado (Jo 6, 66).

Judas Iscariotes era então um homem justo?! Certamente não, mas também não era um monstro, nem um demónio. A propósito da unção de Betânia, João diz que Judas era ladrão, porque roubava do dinheiro da bolsa comum (Jo 12, 1-8). Contudo, se geria esse fundo, era porque tinha recebido esse encargo, que traduzia a confiança que Cristo nele depositava, embora outros, como Mateus (Mt 9, 9; Mc 2, 14), pudessem ter melhor perfil para essa função.

Pode ser que João tenha querido referir que Judas era ladrão para assim explicar a sua traição, pois vendeu Jesus por trinta moedas de prata (Mt 26, 14-16). É provável que o preço acordado tenha sido aliciante para o traidor, mas decerto não foi o motivo determinante do seu crime porque, depois de Jesus ter sido condenado à morte, o Iscariotes devolveu o dinheiro que recebera por esse motivo, horrorizado com a sua própria infidelidade (Mt 27, 3-5).

Qual foi, então, a razão pela qual Judas procedeu de forma tão infame? Só Deus sabe o que aconteceu na sua mente e no seu coração. Mas, quem fielmente seguia Jesus há três anos, só podia ser seu amigo e, portanto, não será temerário supor que agiu por uma boa intenção, que obviamente não legitima a sua traição.

Israel esperava ansiosamente a vinda do messias. Muitos pensaram que João Baptista podia sê-lo, mas ele próprio disse que o não era, e que estava iminente a chegada do Cristo (Jo 1, 19-36). A ocupação romana fazia ainda mais urgente a aparição de alguém que libertasse o povo da escravidão a que fora submetido.

Jesus de Nazaré, não obstante a sua pacata existência como artesão numa pequena povoação da Galileia, durante cerca de três décadas, surpreendeu depois os seus conterrâneos com a sua pregação e milagres (Mt 13, 53-58). Seu primo, João Baptista, testemunhou ser Jesus o messias: o próprio nunca o negou e até disse que o era, nomeadamente à samaritana (Jo 4, 25-26) e ao cego de nascença (Jo 9, 35-38), a quem curou. Contudo, mesmo quando a multidão, entusiasmada com a milagrosa multiplicação dos pães, o quis aclamar como rei, Cristo não aceitou (Jo 6, 15).

A cena repetiu-se várias vezes, mas sempre com o mesmo desfecho, frustrante certamente para todos os que aguardavam, ansiosos, a libertação de Israel. Entre estes, estavam também alguns dos doze, como os filhos de Zebedeu (Mt 20, 20-23), e os que, já depois da ressurreição de Jesus, lhe perguntaram se era então que ia instaurar o tão desejado reino (Act 1, 6-7).  Ainda não compreendiam que é de outra natureza o reino de que Cristo é rei (Jo 18, 33-37).

A última tentativa de entronização de Jesus, como rei de Israel, aconteceu com a sua entrada triunfal em Jerusalém, quando foi aclamado pela multidão (Mc 11, 1-11). Os apóstolos entusiasmaram-se com aquela apoteose, mas não o Sinédrio e, mais uma vez, falhou o propósito de que ele, o messias, alcançasse o poder.  Talvez tenha sido então que Judas concebeu o plano de o entregar aos sacerdotes, para que estes, julgando-o, o reconhecessem como o messias. Se assim fosse, Jesus de Nazaré ocuparia o trono de David, de quem seu pai, José, descendia (Mt 1, 16). Se então toda a nação se sublevasse, os romanos não conseguiriam dominar o povo, que não reconhecia o ímpio Herodes, vil lacaio de Roma que nem sequer era judeu, mas idumeu.

Dito e feito. Iscariotes convenceu o Sinédrio e preparou o golpe: Jesus foi preso no horto das oliveiras (Jo 18, 3-11). A resistência de Pedro foi neutralizada pelo próprio Cristo, que se entregou voluntariamente aos soldados (Lc 22, 47-53). Contudo, não foi reconhecido como messias pelo sumo sacerdote, que o condenou à morte (Mt 26, 65-66). Pôncio Pilatos, apesar de o saber inocente, mandou-o crucificar (Mt 27,11-26). Então, Judas Iscariotes, atormentado pelos remorsos, enforcou-se (Mt 27, 5; Act 1, 18). Bento XVI disse: “não compete a nós julgar o seu gesto, substituindo-nos a Deus infinitamente misericordioso e justo”. Arrependeu-se e salvou-se? Ninguém sabe, mas Jesus Cristo confidenciou a Santa Catarina de Génova: “Não te direi o que aconteceu a Judas, para que ninguém abuse da minha misericórdia”.