No início (e noutros momentos) do filme de culto francês “La Haine” (“O Ódio”, 1995), escuta-se a história de um homem que, a cair de um prédio de 50 andares, se consola a cada piso, dizendo para si mesmo “jusqu’ici tout va bien” (“até ao momento, tudo está bem”), até se aperceber que “mais l’important c’est pas la chute, c’est l’aterrissage” (“mas o importante não é a queda, é a aterragem”). Portugal é como esse homem em queda. Por um lado, sempre disponível para adiar o confronto com os problemas vindouros (mas inadiáveis). Por outro lado, pronto para se iludir com os “milagres portugueses” que, inevitavelmente, estão em rota de colisão com a realidade. O importante não é a queda, mas a aterragem. E, com a pandemia Covid-19, a aterragem ficou muito mais próxima do que se gostaria de pensar. Não, não #vaicorrertudobem.

Muitos dos efeitos destes meses de confinamento não são ainda perceptíveis. Na economia, a explosão já se vê nas centenas de lojas fechadas e nas empresas a meio gás, mas o estrondo ainda não se ouviu. Entre o desemprego, o layoff e as ameaças de insolvência, os dados oficiais começarão a dar conta do desastre em Outubro e Novembro, atropelando o consolo das versões oficiais que nos dizem que o pior já passou. Na educação, os danos na aprendizagem e desenvolvimento das crianças (causados pelo encerramento definitivo das escolas no ano lectivo 2019/2020) são lentos de detectar, mas certos e profundos: teremos pior aprendizagem e menos ascensão social por via da escola, com o acentuar das desigualdades sociais. Na política, iniciou-se uma decadência democrática imparável — com menor escrutínio à actuação do Governo, com uma gritante crise de representação política na direita portuguesa, com enfraquecimento das instituições de fiscalização, com a reintrodução pidesca dos “delitos de opinião” disfarçada de apelo patriótico ao consenso — cujos efeitos se sentirão inevitavelmente nos próximos ciclos políticos.

Mas na saúde, onde diagnósticos extra-Covid-19 e intervenções pararam, já é possível ter uma estimativa do buraco onde caímos. Em relação a igual período do ano passado, fizeram-se nestes últimos meses menos 900 mil consultas hospitalares e menos três milhões de consultas em cuidados primários. Olhando ao número de cirurgias, a diminuição é de 93 mil. Com uma população envelhecida, não podem subsistir ilusões sobre as consequências deste apagão do SNS: pior saúde e maior mortalidade. Nomeadamente em áreas-chave como a oncologia, na qual os atrasos representam, objectivamente, menores probabilidades de sobrevivência. De resto, o excesso de óbitos em 2020, comparativamente a períodos homólogos, começa a revelar-se estrondoso (+26%) e só uma pequeníssima parte se explica pela Covid-19 (+1,5%).

Portugal já era um país com uma economia estagnada e viciado no financiamento externo, sendo ultrapassado por vários países europeus que entraram na UE depois dele. Agora é, também, um país cheio de pequenos ditadores (como bem assinala Henrique Raposo), menos livre e menos plural, mais fragmentado socialmente, subitamente empobrecido, com pior saúde, com mais desigualdades sociais e com pior acesso à educação. Teria outro caminho sido possível? Claro que sim. Há 20 anos, há 10 anos, há 5 anos. E, apesar de tudo, com decisões-chave diferentes, mesmo nos últimos 5 meses houve oportunidades para fazer melhor. Por exemplo, as opções que Portugal tomou na saúde e na educação afastaram-se das de parceiros europeus, que não negligenciaram desta forma o tratamento de outras doenças para além da Covid-19, ou que reabriram as escolas em Maio ou Junho (e até durante Julho e Agosto) para as crianças mais novas não perderem o seu elevador social. Mas o caminho escolhido em Portugal foi sempre este — aquele das vistas curtas. Agora, após décadas a repetir que “jusqu’ici tout va bien”, a aterragem está iminente.

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