Os partidos portugueses são viciados em mitos, que instalam no debate público para enviesar a nossa percepção da realidade. Não é de agora. Por exemplo, se há talento que se reconhece a José Sócrates, era precisamente o de manipular os factos para os encaixar em histórias virtuais de sucesso e, posteriormente, desresponsabilizar-se quando tudo desmoronou. Ora, uma das responsabilidades do jornalismo ou de quem comenta a actualidade assenta precisamente no contrariar desses mitos e no recolocar dos factos na linha da frente.

Um dos mitos que vigora desde há dois anos é este: o governo fez uma boa gestão da pandemia. Acontece que isto não é verdade. Não é verdade na Educação, como já descrevi num artigo anterior. Não é verdade na Cultura, onde os agentes culturais ficaram à mercê da solidariedade entre pares e onde o Estado fracassou nos eventos-piloto. Não é verdade na economia, onde a recuperação será lenta e verá Portugal a afundar-se na cauda europeia. E, claro, não é verdade na Saúde, onde a degradação dos serviços públicos é indesmentível e os indicadores de excesso de mortalidade comprovam os erros nas estratégias adoptadas nos últimos dois anos.

A DGS reconhece-o. Em 2020, identificaram-se seis picos de mortalidade, sendo que a Covid-19 apenas explica directamente dois. Isto significa que, em 2020, a pandemia teve um impacto indirecto muito significativo, seja porque houve doentes que não tiveram acesso a cuidados de saúde por incapacidade de resposta dos serviços, seja porque o medo instalado afastou muitos utentes dos hospitais, seja porque os confinamentos geraram mais complicações e menos diagnósticos. No total, em 2020, houve um aumento de 14% da mortalidade, dos quais a Covid-19 apenas explica directamente 5,9 p.p. — menos de metade. Traduzindo: milhares de portugueses morreram porque o “combate à Covid-19” interferiu com os seus cuidados médicos.

Onde estão as análises a 2021? Ainda não estão em lado nenhum, pois a DGS só agora lançou a sua análise aos dados de 2020 — um ano e meio depois, o que é incompreensível. Infelizmente, a expectativa para 2021 não é melhor. Aliás, o efeito prolongado da ausência de cuidados médicos resultará numa onda de óbitos causados por diagnósticos tardios, tratamentos adiados ou acompanhamentos inexistentes. E não é por falta de alertas: desde 2020, dezenas de especialistas têm assinalado as consequências nefastas e o preço a pagar por se orientar os serviços de saúde para a Covid-19.

Quererá o país discutir estes números, debater estas opções, escrutinar o seu governo? Talvez não queira. Em Janeiro passado, os partidos rejeitaram incluir balanços da gestão da pandemia na campanha eleitoral. E, apesar de tudo isto, Marta Temido é a ministra com maiores índices de popularidade no governo. O #vaificartudobem passou de mantra para resignação e mito — um mito que o governo explorou à exaustão, para em grande medida ocultar os seus erros na gestão da pandemia. Não, não vai ficar tudo bem. Os erros existiram, tiveram consequências e merecem ser discutidos. Há um escrutínio por fazer, verdades por apurar e responsabilidades por atribuir. Vamos mesmo ficar calados?

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