Terá começado nas “redes”, nas empresas tecnológicas, nas universidades americanas, nas editoras ou nos jornais. Silenciar as opiniões contrárias ao pensamento dominante foi, a pouco e pouco, passando de inaceitável a admissível, e de admissível a banalizado e até considerado, sobretudo pelos próprios, um sinal de coragem cívica e grandeza de alma. A esquerda, a quem a cultura woke assenta como um fato costurado à medida, manda calar a direita – não se ouvem histórias em sentido contrário. A prática tornou-se um hábito e chegou às duas maiores assembleias portuguesas de deputados eleitos, a da República e a da cidade de Lisboa, perante a bravura pasmada dos presentes; incluindo os senhores da IL, que defendem liberdades criteriosamente escolhidas para não transtornar a esquerda. Talvez um dia se perceba para o que servem. Já ninguém sabe, ou ninguém se lembra, da origem da imunidade parlamentar, que não nasceu para proteger os deputados de responder na justiça pelos processos de delito comum, nem pelas trapalhadas com dinheiros públicos. A imunidade parlamentar nasceu e foi imposta à democracia para garantir que os deputados pudessem falar em absoluta liberdade, que nenhum pretexto pudesse limitar esta liberdade, e que nenhum deputado fosse perseguido por delito de opinião. Hoje o PS manda nas Assembleias, e manda calar deputados sem que essa irresponsabilidade provoque o mínimo sobressalto. A gravidade disto dá vontade de chorar. Perdoem-me a extravagância de tentar explicar porquê.

Em primeiro lugar, a liberdade de expressão é um direito fundamental. É um direito de quem fala e um direito de quem ouve. Ela presume que o indivíduo tem o direito de expressar as suas ideias e também tem o direito de ouvir as ideias dos outros. Algumas dessas ideias são ou podem ser consequentes, e correspondem à expressão de uma vontade. Numa democracia representativa, é fundamental os eleitores saberem que os deputados em quem eles votaram para os representar podem expressar livremente as suas opiniões, ou seja, as opiniões daqueles eleitores. E aos deputados corresponde essa obrigação, seja ela a de defender as opiniões deles ou atacar as que eles detestam, ou simplesmente recusam, e querem rejeitar. Se os eleitores forem impedidos de expressar a sua vontade, as suas preocupações e desejos, fica comprometido o livre arbítrio de decidir, na proporção dos votos, a sua influência política na sociedade.

Em segundo lugar, a liberdade de expressão é um mecanismo. Serve para separar as boas ideias e as más. Serve também para conhecer a força delas, e saber onde estão, e através do debate poder enfrentá-las; por isso devem ser admitidas nos parlamentos e discutidas pelos deputados. Sobretudo as mais perigosas. Quem cala uma ideia perigosa imagina que está a calar as consequências perigosas dessa ideia. Contribui para o contrário. Se essas ideias não forem discutidas e enfrentadas, se não for dada a oportunidade – e o direito – aos deputados para as desmontar, para as explicar, para se oporem a elas, com competência, com experiência, com proporcionalidade e com ordem, elas vão crescer na desordem da rua, sujeitas à manipulação, com toda a liberdade de se transformarem efectivamente em práticas perigosas – já não serão só ideias nem opiniões.

Há uns meses, Santos Silva, presidente da Assembleia da República, mandou calar André Ventura quando se discutia uma proposta de lei sobre regras de imigração. Há umas semanas, na Assembleia Municipal de Lisboa, sucedeu o mesmo. A presidente da mesa, Rosário Farmhouse, indicada pelo PS, tirou a palavra a um deputado do Chega no momento em que ele lia em voz alta, durante a intervenção, uma notícia publicada num jornal – também sobre imigração. O jornal não era clandestino. Justificou-se dizendo que o deputado estava “a generalizar”, o que era “ofensivo para todos os lisboetas” e, portanto, inadmissível. Na sessão seguinte, passados oito dias, uma deputada do PS acusou toda a direita de misoginia. Esta generalização não perturbou a justíssima e piedosa sensibilidade da senhora presidente.

Graças a Deus. As generalizações são normais, são figuras do discurso e da retórica. Ninguém consegue ter uma conversa ou escrever um texto com pés e cabeça sem cometer generalizações. A deputada do PS fez bem em expressar aquele ataque, é o que ela pensa; os eleitores dela esperam que ela insulte a direita, e diga que a direita é misógina, e cabe aos deputados da direita desmontar esta idiotia. Não cabe à presidente da Assembleia. É dos deputados esse papel e essa obrigação perante os eleitores. E quando a presidente manda calar um insulto, ela está a impedir os insultados de se defenderem, com a brutalidade e a violência verbal que a ideia lhes inspirar. A política não é uma festa infantil nem é, seguramente, uma aula de catequese. A boa política, como a grande arte, não vai sem uma dose de rudeza.

A moral destas tristes histórias está na impreparação política e filosófica de quem desempenha responsabilidades e desconhece, visivelmente, os mecanismos da liberdade de expressão. Vai desaguar numa inaceitável prepotência e um abuso de poder enviesado, como sempre acontece quando o papel do juiz não é desempenhado com a necessária imparcialidade.

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