A 10 de Abril deste ano, as TED Talks voltaram a Vancouver, com a abertura subordinada ao tema Coragem, onde Garry Kasparov fez uma brilhante conferência. Hoje [27 de Abril], a Câmara dos Comuns do Parlamento canadiano aprovou uma moção onde as acções militares russas na Ucrânia são qualificadas como genocídio. O que une estes dois acontecimentos é, não apenas a geografia da clareza e da assertividade, mas também a ausência de algo que nos tem dominado: a subjectividade, o extremo relativismo moral.

Há limites que, aplicando-se aos outros, não se nos aplicam. Porquê? Como é que nos constituímos excepcionais em relação a todos os outros? E não apenas enquanto indivíduos, mas enquanto grupo, ou Estado, já que o individualismo é um fenómeno moderno, não uma constante humana. E o seu fundo operativo é moral tal como é político e, por isso, reverte nas decisões pessoais como nas de governança ou públicas.

Há um conjunto de questões que entroncam no ponto do extremo relativismo moral e da cultura narcísica que progressivamente ocupou espaço e o dilatou também nos estados democráticos ocidentais. Por exemplo: o conforto e a prosperidade alemã propiciam à Rússia milhões de euros por dia em importações de petróleo e gás apesar da invasão russa da Ucrânia, ou seja, favorece a máquina de guerra ao mesmo tempo que a condena – já anteriormente aqui referi a perversidade deste processo de double bind/duplo vínculo. Outro exemplo: diante dos massacres de Bucha, Mariupol, Borodyanka, da destruição visível e inegável das cidades arrasadas pelos exércitos russos em território ucraniano, o PCP recusa a palavra «invasão», nega a própria invasão, e aponta a instrumentalização da nossa Assembleia da República por Zelensky, a quem apelida de belicista. Ou ainda: um grupo de subscritores, figuras públicas com acesso a plataformas onde veiculam, mesmo profissionalmente, as suas opiniões, acusa os media de pensamento único e de falta de liberdade de expressão num manifesto publicado num jornal de referência. E há outros exemplos, de outra natureza, onde se percebe o mesmo extremo relativismo moral: a Rússia de Putin invadir um estado soberano a pretexto de garantir a integridade das suas fronteiras. Le Pen usar a democracia para implantar um regime anti-democrático e reconfigurar a política europeia num eixo autocrático Paris-Moscovo. Ou Órban, em claríssima infracção dos valores democráticos europeus, receber fundos da UE. Ou Trump em linha de colisão com a constituição que lhe permitiu ser eleito.

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Este extremo relativismo moral tem origem no «ponto de vista moral». Em resumo e com grande liberalidade, este «ponto de vista moral» funda-se em Hume que entendia haver um acordo de moralidade, isto é, de julgamentos morais quando nos retirávamos da nossa posição individual, aquela que defende apenas os nossos interesses, para julgarmos o bem comum com imparcialidade. A obrigação à lei e ao dever eram a bitola do mérito enquanto sinónimo de virtude. E do ponto de vista do contrato social, com Hobbes e Locke, a moral do bem comum subjazia à legitimidade da autoridade política a despeito das diferenças radicais, inconciliáveis, entre ambos. Este «ponto de vista moral» bifurca-se quando, nos anos 70 deste século, John Rawls publica UmaTeoria da Justiça, na qual, e com idêntica liberalidade, a justiça é a virtude cardeal das instituições sociais e assenta em dois princípios. Primeiro, as liberdades individuais têm primazia sobre o bem comum. Segundo, as desigualdades de distribuição de riqueza, poder e autoridade podem ser justas. Ou seja, o «eu» que escolhe subordina o «nós» do bem comum. De acordo com Rawls a liberdade é prioritária. E assim, à primeira vista, quem não concordaria com tal prioridade? Porém nenhuma das liberdades básicas pode ser condicionada a não ser para garantir a liberdade em si mesma. As consequências que, in extremis, daqui decorrem são claras: os limites não se impõem porque constrangem as liberdades; e os valores são inter-permutáveis. Vemo-lo, por exemplo, nas empresas domiciliadas em países estrangeiros, com regimes fiscais favoráveis; nos fundos predadores; na produção deslocalizada para países de mão de obra barata após o desemprego de trabalhadores qualificados; nas mais profundas assimetrias sociais – buraco por onde entram os extremismos políticos. O liberalismo lockesiano foi substituído pelo neo-liberalismo rawlsiano. E a inter-permutabilidade vemo-la na normatividade da teoria pós-identitária tanto quanto na aniquilação da memória pelo woke anti-histórico. Paradoxalmente, estes dois movimentos, neo-liberalismo e woke, ambos de génese narcísica, evoluíram para formas tribalistas primeiro e totalizantes depois. E diante de ambos, e para evitar o fim das democracias liberais seja às mãos de Putin, Le Pen, ou Mélenchon, Trump, pai ou filha, ou quaisquer outros surgidos ou por surgir, é necessária a mesma medida: limites. Claros e exequíveis. A contenção neo-liberal terá de ser feita, à semelhança do que acontece com a democracia, pelos seus próprios mecanismos de auto-correcção. Ou seja, tem de haver regulação do Estado. A contenção do neo-puritanismo woke, perdidos que estão parte da academia e dos media, terá de ser feita pela insubmissão factual, artística e cultural.

A verdade é que as democracias liberais são o reduto da tolerância e da diversidade. Nunca a revolta foi mais conservadora nem os conservadores mais progressistas.

A autora escreve segundo a antiga ortografia