A 29 de Julho de 1976 o comunista José Rodrigues Vitoriano tornou-se vice-presidente da Assembleia da República. O presidente era naturalmente um socialista, Vasco da Gama Fernandes, pois fora o PS o vencedor das eleições legislativas de Abril de 76. O PCP que ficou em quarto lugar e teve 14,39 por cento dos votos viu também ser eleito para o lugar de secretário do parlamento o seu deputado José Manuel Maia.
Atente-se na data: Julho de 1976. O cerco à Assembleia Constituinte fora há escassos oito meses. O 25 de Novembro idem. Nesses acontecimentos e em muito daquilo que os precedeu ficara bem patente o papel do PCP no combate à democracia, o seu envolvimento em actos para subverter o regime e o pouco apreço do seu grupo parlamentar pelas regras da convivência pluralista.
Mas oito meses depois o PCP não só se sentava na mesa da Assembleia da República sem que se questionasse o seu direito a tal como conseguia um expressivo apoio das outras bancadas: José Manuel Maia foi eleito secretário com 219 votos e José Rodrigues com 210. Feitas as contas (não esquecer que o parlamento tinha então 263 deputados) torna-se óbvio que deputados do PS e do então PPD ou do CDS votaram nos nomes apresentados pelo PCP.
Por mais estranho que tudo isto possa soar aos apologistas contemporâneos das cercas, dos cordões sanitários e das estrambólicas linhas vermelhas, não é só no parlamento que a institucionalização do PCP foi garantida: apesar do seu evidente papel no clima de insurreição vivido no país, o PCP manteve-se no VI Governo Provisório após o 25 de Novembro. Vai aliás ficar no executivo até 23 de Julho de 1976 quando foi nomeado o I Governo Constitucional liderado por Mário Soares.
Recordar estes momentos fundacionais da primeira Assembleia da República pós-Constituinte é fundamental para perceber o carácter anormal do que aconteceu no parlamento português desde que André Ventura foi eleito deputado único em Outubro de 2019, com particular relevo para o período de 2022 a 2023, quando os deputados chumbaram por quatro vezes os nomes apresentados pelo Chega para o lugar de vice-presidente do parlamento. E note-se que não os chumbaram duma maneira qualquer.
O primeiro nome apresentado pelo Chega foi o de Pacheco de Amorim, que obteve apenas 35 votos a favor dos 116 necessários. Mithá Ribeiro conseguiu 37. Rui Paulo Sousa 64 e Jorge Valsassina Galveias 58. João Cotrim de Figueiredo da Iniciativa Liberal também foi chumbado mas conseguiu 108 votos a favor. O que aconteceu aos nomes propostos pelo Chega foi mais que um chumbo: foi uma humilhação.
Para esta manipulação do parlamento contribuiu decisivamente a figura de Augusto Santos Silva que, ironia das ironias, corre agora o risco de nem ser eleito para o parlamento a que presidiu e cujo funcionamento condicionou por razões de táctica política. Mas por mais tentador que seja fulanizar na figura de Santos Silva a subversão da prática parlamentar, há que reconhecer que não esteve só.
Deputados virtuosos, líderes virtuosíssimos, jornalistas e comentadores impantes de virtude garatujavam sem parar linhas vermelhas em cenários políticos imaginários, onde invariavelmente se continha o Chega. As linhas vermelhas foram um dos maiores embustes da democracia, como se percebeu a 10 de Março: as linhas vermelhas que iam conter o Chega fecharam-se num círculo à volta dos outros partidos e o Chega corre do lado de fora.
Agora fazem-se contas sobre quanto tempo Montenegro aguentará, não percebendo que o maior risco não é Montenegro não aguentar mas sim “costizar”, ou seja conseguir manter o poder à custa de não governar.