Escritores franceses usaram a expressão Jeremiades para identificar quem muito se lamenta, importunando os outros. A origem etimológica da palavra pode encontrar-se no Livro das Lamentações do Profeta Jeremias, do Antigo Testamento, e vê-se aplicada na literatura francesa por escritores como Stendhal, Céline, Leroux, Goncourt, etc.

Este texto poderia ser um Jeremiades, pois é escrito em Londres, em Agosto, onde, no centro da cidade, sobretudo nos bairros de Mayfair e Westminster, agora as multidões já não são inglesas, nem sequer europeias. A partir das 19 horas vêem-se milhares de mulheres envergando os trajes islâmicos, a burka, o Nigab, o Hidjab e o Xador, uma mancha escura como se todas estivessem de luto pesado, muitas a saírem e entrarem em Rolls Royces, Bentleys, e carros semelhantes, outras a passearem-se a pé, ou sentadas em cafés das redondezas escolhidos por gente de “menos” posses, todas sempre rodeadas de crianças, com maridos colectivos em casamentos na maioria dos casos negociados sem amor, aos 11, 12 anos, com sujeição inexorável à mais implacável lei muçulmana.

Foto Dan Kitwood/Getty Images

Mulheres às centenas de milhar, sem qualquer liberdade, aqui ancoradas na pátria da liberdade, onde viu a luz o Bill of Rights. É esse o meu Jeremiades.

É manifesto o abalo cultural a que o Reino Unido se encontra sujeito, tal como grande parte da Europa, nesta invasão que parece espelhar o princípio do fim da queda do Império Romano, em que um bárbaro, após 1000 anos de um processo de consolidação e posterior decadência dos valores da cultura clássica, se apoderou do governo de Roma em 476 D.C.

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Mas o músculo cultural é tão forte nestas ilhas que a luta pela sobrevivência da identidade cultural britânica prenuncia-se épica e ilustrada, E essa luta será fora das ruas, onde o crime das naifadas já abunda, o tráfico de carne humana apavora, as violações em massa de inglesas brancas por gangs paquistaneses identificados pela justiça e nos media deixando governantes paralisados, a aplicação da justiça tornando-se cada dia mais difícil devido à atipicidade da criminalidade emergente, os efeitos devastadores das redes sociais a fazerem-se sentir.

Esse músculo cultural britânico é bem visível, com exemplos gritantes. Dou apenas três, entre muitos aqui acessíveis este verão: no teatro, Imperium no Gielgud Theatre; na arte, a Summer Exhibition na Royal Academy; na música, os Proms, no Royal Albert Hall.

No teatro, a peça “Imperium” é assunto especialmente poderoso e metafórico. Em centro de cena está Cícero, elocubrando sobre a questão da supremacia da lei sobre os devaneios dos governantes.

A peça “Imperium”

Trata-se de uma peça de teatro em duas sessões de três horas cada (são representadas alternadamente cada dia), e em que o espectador chega ao final da segunda parte como se nem uma hora tivesse passado. E, entusiasmado, destina aplausos intermináveis e entusiásticos ao brilho dos diálogos, da encenação, e da representação. Trata-se da história da vida de Cícero, representada magistralmente pelos ases da Royal Shakespeare Company, adaptação ao teatro do que foi contado em belíssima prosa por Robert Harris, numa excelente trilogia, campeã de vendas nas livrarias.

Historia magistra vitae est, a história é mestra da vida, é uma citação de Cícero que se aplica à pertinência desta notável manifestação teatral, a que é imperativo assistir para quem passe por Londres, domine o inglês, e disponha de umas módicas vinte libras, ocupando um razoável lugar na plateia, onde achei natural ver ao meu lado Michael Howard, um político da ribalta. Se houver políticos portugueses que dominem bem o inglês, seria útil assistirem a esta exibição da suprema arte britânica que é o teatro, para melhor focarem a questão do Império da Lei no Estado de Direito, e se familiarizarem melhor com as artes da corrupção, da hipocrisia, da mentira, da habilidade soez, e da afirmativa falta de dignidade.

Passe-se à Summer Exhibition na Royal Academy of Arts, exposição que comemora agora 250 anos. Desde 1769 que a Summer Exhibition é apresentada, na Royal Academy, mostrando desta vez cerca de 1.000 obras de arte seleccionadas entre cerca de 10.000 candidaturas de 5.000 artistas. Por ali passaram Constable, Turner, Gainsborough, Joshua Reynolds, Thomas Lawrence, Millais, Hockney e tantos outros nomes da grande pintura inglesa. É um acontecimento de grande impacto, que no ano passado acolheu entre Junho e Agosto 200.000 visitantes, este ano esse número sendo certamente ultrapassado, mas batido em 1879 com 391.197 entradas.

Destacam-se de forma exuberante dois nomes da arte portuguesa na Summer Exhibition de 2018. Primeiro, o de Joana Vasconcelos, com uma peça colossal intitulada Royal Valkyrie, em têxtil, tipo candelabro, pendurado do tecto da primeira sala: sobressair mais em tão destacado acontecimento, é difícil. Depois, Paula Rego, com um tríptico intitulado Human Cargo, uma peça de excepcional valor artístico, mas que deprime. Nenhuma das obras está à venda. São presenças que acrescentam valor ao já grande prestígio destas grandes artistas.

Royal Valkyrie, de Joana Vasconcelos (Foto: joanavasconcelos.com)

Apesar de muitas obras desta exposição serem medíocres, a verdade é que todas as presenças trazem prestígio artístico e valorização comercial a quem seja selecionado para participar. Além do impacto das obras das minhas compatriotas, gostei muito de outras duas, uma de John MacFadyen, Le Village Hollandais, e outra, bem menor, um tríptico inspirado em Hyeronimus Bosch, da autoria de Emma Haworth, intitulado The Park of Delights and Difficulties, Hell on Earth, Heaven on Earth.

Le Village Hollandais, de John MacFadyen

The Park of Delights and Difficulties, Hell on Earth, Heaven on Earth, de Emma Haworth

Cada sala tem as obras penduradas de cima a baixo das paredes, estas expressamente pintadas para a exposição com cores leves e alegres, num ambiente que recorda os anos 60, uma celebração sem drama nem esse espírito revolucionário tão afim ao mundo da arte contemporânea, com uma multidão inquieta e feliz, que enche ao limite todas as salas diariamente, desde a abertura ao encerramento.

Finalmente, nesta estadia em que os muitos compromissos exigiam descompressão com arte e cultura, assisti ao 46.º concerto Prom desta temporada, atraído pelo nome do pianista Benjamin Grosvernor que recentemente teve uma brilhante actuação na Gulbenkian. O Royal Albert Hall, com capacidade para cerca de 5.700 espectadores, neste concerto da National Youth Jazz Orchestra que interpretou Gershwin e Leonard Bernstein, atraiu umas 4.000 pessoas, a pagarem preços muito acessíveis, a partir das sete libras, ou não fossem os Proms a mais popular manifestação mundial de música predominantemente erudita, 75 concertos entre 13 de Julho e 8 de Setembro, normalmente lotados.

Assisti ao último Prom do verão de 1966 no Royal Albert Hall, normalmente o que mais procura tem, de tal forma que, ano após ano, os bilhetes vão a sorteio meses antes do acontecimento. Nessa remota ocasião escutei a BBC Symphony Orchestra dirigida por Malcolm Sargeant a conduzir a Nona Sinfonia de Schubert, prolongando-se durante mais de uma hora a conclusão do Concerto, com o Land of Hope and Glory do Elgar, o Rule Britannia de Thomas Arne, e o Hino Nacional Britânico, o God Save the Queen, composições acompanhadas não só pela orquestra, mas também pelos trezentos membros do Coro, e pelo público, que conhece as líricas de cor, e as entoa brandindo com exuberância nacionalista a Union Jack. Era o Last Night at the Proms, que este ano ocorrerá, mais uma vez, a 8 de Setembro. Pouco ou nada mudou desde então, salvo que agora a Last Night at the Proms é transmitida em simultâneo do Royal Albert Hall para grandes écrans situados parques públicos, nomeadamente o Hyde Park, situados em grandes cidades britânicas, a que assistem centenas de milhares de pessoas em ambiente de grande animação, agitando incansavelmente a patriótica Union Jack, ao som dos seus hinos e de peças imortais da música erudita. Manifestação da cultura britânica, sem paralelo em nenhuma outra parte do mundo.

Apesar da qualidade dos concertos ser em geral muito elevada, as críticas registam por vezes grandes desastres. Foi o caso da visita de agora ao Royal Albert Hall, que não foi uma última noite, mas apenas o 46.º dos 75 concertos programados até ao fim dos Proms 2018. Assisti ao assassinato a frio do Gershwin e da sua mágica Rapsodhy in Blue, que nem Benjamin Grosvernor salvou, tendo também sido sonoramente liquidado o Leonard Bernstein em numerosos trechos do West Side Story. Este concerto foi às 22h15. Às 19 horas do mesmo dia, com o recinto completamente vendido, já se tocara o 45.º concerto, com a Orchestre de La Suisse Romande, que interpretou de forma imaculada obras de Debussy, Ravel e Stravinsky. E é todos os dias assim, a força da música, a força da cultura, a imersão de um povo na cultura da música.

Entretanto, a anos luz da Royal Academy, do Gielgud Theatre e do Royal Albert Hall, aos fins de tarde, e às noites, os bairros de Mayfair e Westminster parecem de luto, com milhares de mulheres com os seus véus negros da cabeça aos pés, linguajares imprecisos, formalmente acompanhadas por homens de tez escura, por vezes com um rancho de pelo menos três ou quatro filhos atrás. Mas até esse cenário humano da rua acaba esmagado pela cultura, pela firmeza da arquitectura clássica, da harmonia urbana, do perfil centenário dos autocarros encarnados e dos táxis pretos, pela sensação de disciplina e ordem que impera a céu aberto nesta capital do reino britânico, onde comanda o Império da Lei, com arte.

E há o que se passa em Cardiff, Birmingham, Manchester e nas terras para onde também aflui tanta gente pela via catastrófica de Calais, muitos acabando em guetos imigrantes intransponíveis. Trata-se de outra invasão, essa bem mais dramática, igualmente fracturante, um poder popular emergente, este tão ou mais penetrante que o de Mayfair e Westminster, não pela via do capital, mas pela via do número. O íman é comum a todos, a atração pelo que não têm: o Império da Lei, a sociedade organizada formatada pela civilização ocidental, a força da cultura democrática, e a expectativa da oportunidade por um futuro melhor.

A fortíssima cultura ocidental inglesa sobreviverá a esta onda de vestimentas negras de azeviche, com todo o poder financeiro que está por trás? E à outra onda, esta com muito menos meios, mas muito mais numerosa e também de negro vestida, que termina em ghetos germinadores de fundamentalismos irracionais?

Será que a pátria do Bill of Rights e do exemplo democrático centenário consegue integrar tão díspares culturas, permitindo um optimismo que afaste quaisquer Jeremiades?