Apesar das reviravoltas políticas no Reino Unido terem animado a cena política nos últimos dias, a realidade é que o curtíssimo Governo de Liz Truss é um pequeno episódio triste numa longa temporada que começou com o Brexit.

Os mercados não gostaram do plano de Liz Truss porque aumentava a despesa de forma quase permanente e cortava os impostos sem que se vislumbrasse como qualquer daquelas medidas seria financiada. Mas o que é estruturalmente mais preocupante para o Reino Unido é que, cada dia que passa, o Brexit parece ter sido um erro de política autoinfligido. Nenhum Primeiro-Ministro conservador britânico tem conseguido demonstrar que ter saído da União Europeia foi uma boa decisão, e isso continuará a alimentar erros de política, num esforço cada vez menos credível para tentarem justificar que estavam certos.

Os defensores do Brexit basearam as suas posições em dois argumentos fundamentais: o primeiro é que sair da União Europeia permitiria implementar políticas economicamente mais liberais. O segundo é que o Reino Unido ficaria livre para fazer acordos de comércio e de investimento com o mundo inteiro, em particular reforçar as ligações com o Commonwealth, em vez de dependerem da política comercial da União Europeia.

O primeiro argumento é atendível. O Reino Unido era de facto um dos países economicamente mais liberais da União Europeia. A própria construção da Europa foi marcada por esta ligeira desconfiança mútua entre um Continente mais intervencionista e o Reino Unido, que evitou excessos de parte a parte. Mas também é um argumento exagerado porque países como a Holanda e a Irlanda, economicamente muito liberais, prosperam perfeitamente dentro da União Europeia.

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Já o segundo argumento é errado. A pandemia e a guerra mascararam o efeito do Brexit no comércio e no investimento internacional. Mas as tendências globais mudaram drasticamente e o Reino Unido está atualmente numa posição muito desfavorável na teia de interligações mundiais.

O fenómeno mais marcante da última década, desde a crise financeira, foi a travagem da globalização que tinha transformado o mundo desde o final da segunda guerra mundial. Entre 1970 e 2008, o comércio mundial (exportações mais importações) em percentagem do PIB subiu de 25% do PIB para 61% do PIB. Desde então foi flutuando ao sabor das crises, e em 2019 era apenas 56% do PIB.

Ao mesmo tempo, as relações de comércio e investimento intrarregionais estreitaram-se em detrimento das relações inter-regionais. Essa tendência é muito óbvia na União Europeia, onde o peso das transações intracomunitárias nas exportações da União Europeia subiu de 54% em 2012 para 61% em 2021, mas também noutras regiões. O peso dos países emergentes nas exportações dos países avançados estagnou deste 2012 à volta dos 65%.

Estas tendências deverão intensificar-se nos próximos anos. Não é só uma oposição crescente entre Oeste e Leste, visível na recente política dos Estados Unidos de impedirem cidadãos americanos de trabalharem em empresas de tecnologia na China, ou nas críticas crescentes à tentativa de aquisição por uma empresa chinesa da uma participação no porto de Hamburgo. As relações entre países avançados que não são vizinhos também estão mais difíceis. Sinal disso é a crítica francesa à decisão da Administração Biden de incentivar a compra de carros “verdes” americanos em detrimento dos europeus.

A expetativa de que o Brexit abriria um maravilhoso mundo novo ao Reino Unido, cheio de acordos comerciais com países fora da Europa, uma relação privilegiada com os Estados Unidos e o reforço das relações com o Commonwealth acabou por não se concretizar. Quando o peso do comércio internacional no PIB da União Europeia recuperou em 2021, depois da pandemia, subindo de 86% para 91%, no Reino Unido continuou a cair, descendo de 56% para 55%.

O mundo está menos globalizado e mais regionalizado, e, neste enquadramento, a decisão do Reino Unido, voluntária, de sair da União Europeia parece um tiro no pé.