Nas comemorações dos 500 anos da expedição marítima de Fernão Magalhães, a Amazon Prime Video estreou a série “Sem Limites” que, procura retratar a épica viagem à volta do mundo e que seria terminada por Elcano. Dirigida pelo americano Simon West, esta produção tem um propósito indisfarçável: recentrar Elcano como o grande herói de tal façanha.
Toda a série – desde a primeira cena – está inquinada por erros históricos gritantes. Não conseguem sequer acertar no verdadeiro motivo da viagem – desacertos grosseiros que adulteram todo o enquadramento da viagem e das personalidades históricas envolvidas. Dir-me-ão que esta é apenas uma série de entretenimento a que são permitidas certas liberdades, e que as alterações visam apenas dar mais dramatismo ao enredo. Acontece que numa sociedade marcada pelo audiovisual, é esta mensagem errada que permanecerá no imaginário da maioria das pessoas e – deixem-me acrescentar –, esta grande viagem marítima tinha ingredientes mais do que suficientes para ser cativante, sem invenções e adulterações (algumas perfeitamente infantis).
Uma oportunidade perdida.
Com um orçamento de 30 milhões de euros esta é uma série que não agrada a ninguém, nem mesmo aos espanhóis – que tanto escreveram sobre ela. É ler as críticas que se espalham pela comunicação social e internet. Na verdade, nada mais é que um “filme de piratas”, cheio de estereótipos que não dão profundidade, nem à personalidade de Magalhães, nem do verdadeiro Elcano. Uma produção que não consegue transmitir a dimensão histórica da maior e mais dura viagem daquele tempo, que levou os navegadores ao seu limite humano. A expedição que viria a desvendar um quarto do mundo, a fechar o ciclo das grandes descobertas marítimas, e a dar a verdadeira dimensão do globo terrestre… Tanto custa fazer mal como fazer bem, e as entidades oficiais portuguesas e espanholas poderiam ter concertado esforços para produzir algo sério, marcante e instrutivo para a memória histórica dos dois países.
A estratégia espanhola
Voltando aos erros. Num paralelo futebolístico, diria que, se o árbitro se engana sempre para o mesmo lado, não são erros casuais, mas sim estratégicos. É o que sucede.
Magalhães é apresentado como um louco, perdido, ambicioso, cruel, carrasco, traidor do rei português e pouco merecedor de confiança da coroa espanhola… (Não, Espanha ainda não existia, mas… enfim, pormenores.). Em contraponto, Elcano é o personagem “cool” – bom espadachim, solidário, bom companheiro, piloto (que nunca foi), sabedor das coisas do mar, que reparte a sua comida quando há fome, anjo salvador em batalhas e tempestades, democrático e heroico salvador da expedição. Não há dúvida: emerge como o grande protagonista.
É verdade que após a morte de Magalhães, saiu do seu quase anonimato e comandou os sobreviventes que cruzaram o “mar português” e retornaram a Sevilha, rematando à volta ao mundo – que não era, nem nunca fora o fito da expedição. Tem o seu lugar na história e ninguém o poderá usurpar. Agora, importa não confundir a parte com o todo. E importa sublinhar que toda esta desonestidade intelectual “sem limites” para apoucar Magalhães e elevar Elcano é patrocinada por entidades oficiais espanholas. Há uma estratégia clara.
E a estratégia portuguesa?
Em vida, Magalhães enfrentou a desconfiança dos nobres castelhanos pelo facto de ser de outro reino. Conspiraram contra ele durante toda a viagem e tentaram denegrir o seu papel após a conclusão da mesma. A sua honra foi salva por Antonio Pigafetta, o cronista da armada, que repôs a verdade dando a conhecer o seu diário a vários reis da Europa e ao próprio Papa. Cinco séculos passados continua a ser vítima desta estéril rivalidade ibérica.
E da parte de Portugal, qual foi a estratégia?
Existe uma Estrutura de Missão do V Centenário da Primeira Viagem de Circum-Navegação de que resultaram umas tantas publicações e uma ou outra exposição, algo ténue e suave que a famosa pandemia não explica de todo.
Parece ter havido sempre vergonha de assumir Magalhães – talvez porque navegou com a bandeira de Castela. A verdade é que, desprezado pelo rei português, este se limitou fazer pela vida, prestando serviços a outra coroa. E como emigrante que foi – e Portugal teve e tem tantos –, levou os conhecimentos e a raça portuguesa por esse mundo fora, sem a qual esta façanha não teria lugar. E o nosso país deve ter orgulho no seu feito e, passados quinhentos anos, lutar pela afirmação do seu legado, pelo seu nome e honra. É pedir muito?
Seria importante alargar o período de comemorações dos 500 anos da circunavegação e preparar um plano forte para assinalar oficialmente tão importante façanha junto das novas gerações. Um trabalho pedagógico e verdadeiro junto das autarquias e comunidades escolares. Estamos sempre a tempo de emendar as nossas omissões.