Desde a semana passada, os acontecimentos na Catalunha evoluíram exatamente no mesmo modelo das últimas duas semanas: o apoio à independência perdeu força com a deslocalização das sedes de bancos e empresas de Barcelona para outras cidades espanholas, e no fim de semana, milhares de pessoas aglomeraram-se nas ruas das principais cidades de Espanha, umas pelo unitarismo, outras pelo diálogo entre as partes.

Puigdemont leu bem a rua (mais uma vez), e dirigiu-se ao púlpito da Generalitat para fazer um discurso que já é conhecido pelo nome de “oito segundos de independência”. Declarou-a, para logo depois a suspender por tempo indeterminado a bem do diálogo com Madrid. Claro, atrasou-se uma hora devido a importantes contactos com eventuais mediadores externos (que até agora ninguém sabe quais são) e desempenhou na perfeição o papel de líder responsável, que representa a vontade expressa pelos catalães, mas atende também aos clamores pelo respeito pelo estado de direito e pela Constituição, vindos de Madrid e de comunidade internacional. Mas, mais importante, passou a batata quente para o governo central. Mais uma armadilha.

Mariano Rajoy respondeu com um pouco menos de precipitação e com o apoio institucional do PSOE, mas de uma forma teimosamente legalista: a Catalunha tem até segunda feira para esclarecer se declarou independência ou não (com três dias de tolerância) e caso o tenho feito, Madrid adicionará o artigo 155 da Constituição, que corresponde à imediata suspensão dos direitos de autonomia, e transferência de todos os poderes para o governo central. Portanto, tudo na mesma: Puigdemont e a sua gente continuam a ser mestres dos golpes palacianos, ainda que sem palácios, e Rajoy e os seus apoiantes continuam a cair no jogo que lhes é montado: teimam em não perceber que o problema do nacionalismo catalão não é apenas um problema legal. É principalmente uma questão política e identitária, que nunca se resolverá sem diálogo e acordos. Vergar a Catalunha (i.e., levar a Generalitat a desdizer-se) ou humilhá-la perante o mundo (i.e., retirar-lhe os poderes de autonomia ainda que temporariamente) só vai agravar a situação. Se Puigdemont se tem mostrado capaz de manipular factos e situações a seu favor, como já foi escrito a semana passada, Rajoy não tem sido capaz de lidar com essa manipulação como se exige a um chefe de estado de um país em crise.

Muito se tem escrito na imprensa sobre as razões dos dois lados do conflito. Prefiro hoje trazer outro tema que não me parece menos importante: o uso e abuso dos referendos para fins políticos. Tenho a certeza que não sou só eu que me tenho dado conta da proliferação de consultas públicas sobre assuntos determinantes, que deviam ser decididos nas instituições democráticas representativas. Ou seja, o referendo deixou de ser um instrumento muito esporádico para se tornar numa arma de arremesso e/ou de sobrevivência política. O que é, em si só, uma mudança profundamente antidemocrática.

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É antidemocrática por três razões. Primeiro, porque desvirtua o modelo mais adequado para gerir as sociedades: a democracia representativa. As populações elegem os seus representantes em eleições livres e periódicas por um mandato com uma duração previamente estabelecida. Se os eleitos não são capazes de cumprir as suas funções, então o estado de direito tem mecanismos próprios para os destituir. Se os eleitores não estão satisfeitos com a atuação dos seus representantes, podem castigá-los nas urnas. Entretanto, existem variadíssimos mecanismos de demonstração de descontentamento: eleições para outras instituições que decorrem a meio de mandatos, manifestações públicas de desagrado, liberdade de assembleia e da expressão.

Em segundo lugar, porque permitem aos responsáveis políticos – sublinho mais uma vez, os nossos representantes eleitos – esquivarem-se de tomar as decisões que lhes competem e de pagarem o respetivo preço. Lembrem-se, por exemplo, do referendo na Grécia em 2015, em que a população foi chamada a responder sobre os acordos de Atenas com a Troika. Os gregos rejeitaram os acordos (mais de 60 por cento) mas Alexis Tsipras, por força da realidade e de assinaturas prévias governo anterior, teve que defraudar a vontade popular, e ainda assim continua a representar os gregos. Ou, em alternativa, as promessas de referendo servem para ganhar votos. Lembrem-se agora que David Cameron ganhou a sua última eleição com a promessa de referendar a permanência da Grã-Bretanha na UE. Conseguiu o objetivo imediato (ser eleito), mas fez mal as contas políticas e perdeu o referendo. Demitiu-se, claro, mas quem sai verdadeiramente prejudicada foi a população britânica e os 27 estados europeus. E ainda não conseguimos prever a extensão das consequências desta irresponsável fuga para a frente.

Em terceiro lugar, como se disse a semana passada, estes referendos têm em comum o contexto dos populismos e nacionalismos que parecem ter crescido como cogumelos na Europa dos anos 2010. Mas têm outra coisa em comum, muitíssimo mais grave: a exploração e manipulação indevida dos sentimentos das populações divididas e acossadas por uma sucessão de crises. Diz-nos a socióloga Arlie Russell Hoschild que em momentos destes, as pessoas tendem a construir “muros de empatia”, uma espécie de concha em que só ouvem os argumentos que reforçam as suas ideias pré-concebidas, e desprezam as ideias contrárias. Assim, jogo do referendo está viciado de início. Mais, estas consultas populares fazem-se apelando ao lado mais humano dos eleitores: o medo. O medo da situação económica insustentável (Grécia), o medo de perderem o que têm para o Outro (o referendo que determinou o Brexit), o medo de perderem gradualmente a identidade e autonomia (Catalunha). E não há nada mais eficaz que o medo para transformar um voto racional (democracia representativa) num voto emocional (consultas populares).

Concluo voltando à Catalunha: o referendo de dia 1 de outubro em nada é equiparável ao grego e ao britânico. É, em tudo, ilegal. Mas criou um impasse político profundo que se prolonga no tempo, e a avaliar pela astúcia da Generalitat e a intransigência de Madrid, veio para ficar, e poderá agravar-se nas próximas semanas. E é o mais recente exemplo (extremo, diria até) desta tentativa deliberada de manipular os sentimentos populares para fins políticos. É disso que são feitos os referendos: da demissão dos representantes de tomarem as decisões que lhe competem, da fuga para a frente no que respeita à consideração de problemas políticos graves, e da exploração e manipulação dos sentimentos do eleitorado a favor de uma determinada causa. Falta de fé nas pessoas? Não. As ruas espanholas têm mostrado bem mais sensatez que os responsáveis políticos. Têm-se enchido de milhares que lhes pedem que dialoguem. É, isso sim, uma manifestação de desagrado pelo uso político indevido dos sentimentos populares – umas das muitas ameaças atuais às estruturas enfraquecidas da democracia ocidental.