1 Há uns tempos atrás, na apresentação do último livro de Eduardo Marçal Grilo*, ao cumprimentar o Presidente da República, após tê-lo ouvido intervir, disse-lhe em voz baixa e muito discretamente “devias fazer só isto”. Foi um impulso. A minha costela institucional nunca me permitiria dirigir-me deste modo ao Chefe de Estado não fora a inteira certeza de que ninguém, no ápice de um cumprimento de circunstância, se iria aperceber do que levava dentro o impulso. Levava a comparação inescapável entre o cidadão sóbrio – e contido e quase senhorial – Marcelo Rebelo de Sousa que brilhara na sessão, e um Presidente permanentemente irrequieto e metediço – às vezes desnorteante, às vezes desnorteado, muitas vezes cansado, quase sempre cansativo e sempre dono de um critério político intrigante – que calhou presidir-nos. O fulgor intelectual, o saber, o interesse histórico, o conhecimento íntimo dos personagens com que, em cima de um palco, um notabilíssimo Marcelo Rebelo de Sousa “viajou” pelos ministros da Educação de Salazar e de Caetano – tema do livro de Marçal Grilo – tinham pura e simplesmente encantado a lotadíssima plateia. Um grande momento.
Uma hora depois surgiam, rotineiramente, os pequenos e médios momentos: o inexorável ecrã da televisão havia de deixar a imagem de um saltitante Chefe de Estado, demasiado voraz no verbo e sempre veloz na passada, a discorrer sobre tudo e nada, sem sombra de necessidade aparente: tudo o que naquele dia, e mais o que sobrara da véspera, viera à sua rede, era peixe para o Presidente da República. O cargo dispensá-lo-ia do equívoco da omni presença, a própria política ainda mais, a sua interpretação de si próprio, não.
E no entanto… quão culturalmente magnífica fora a sessão do intelectual naquela tarde, quão enorme era o contraste com o Presidente num ecrã nocturno. Os historiadores darão conta desta sobreposição de “encarnações”, a mim cabe-me apenas a conta do contar. Para melhor desenvolver o resto.
2 Antecipando intuitivamente o agrado mediático com que o último número televisivo do Presidente da República iria ser acolhido, nada me surpreendeu no aplauso generalizado. A media deve-lhe muito (e ele, tudo a ela). Também previsivelmente, a necessidade dos portugueses ouvirem algo de parecido com a autoridade de Estado, levá-los-ia a tomar a nuvem por Juno – como levou – e a irem dormir confiantes que estão entregues. E, last but not the least, as confrangedoras últimas semanas de inadmissíveis ou incompreensíveis atitudes do Chefe de Estado necessitavam de intervenção pública com carácter de urgência: dando aparência de “ocupação” da política, serenidade institucional, controle nacional do estado das coisas. Toda a gente “acha” que foi isto que viu. Tenho dúvidas. Sete anos é muito ano para se poder separar uma circunstancial performance televisiva, por muito encenada que estivesse – e estava, ao milímetro –, dos sete anos que a precederam. Nós lembramo-nos: de ano para a ano, escasseia a assinatura presidencial no país: uma simpática selfie nunca se confundirá com a indispensabilidade de uma impressão digital. O Presidente, desde sempre preso no casulo da sua invulgar lógica de actuação presidencial, nunca ousou outra. Se a tentasse, perdia o pé. Age só, pensa só, escreve só, vive só. Comenta só. Dispensa conselheiros e afins, é avaro com o discurso dos outros, o que eles dizem interessa-lhe pouquíssimo. Mal os ouve. Está demasiado ocupado consigo próprio. É o full-time-job dele mesmo. Sucede porém que hoje – mais defensivo e mais enfraquecido – está ainda mais só: o governo está em decomposição mas a maioria é de aço, um e outro não são a mesma coisa. Ter saído na rifa das últimas eleições – despropositadamente convocadas – uma maioria absoluta socialista foi a pior das piores rifas que poderiam ter calhado em sorte ao Chefe de Estado. Transformou-o num prisioneiro. Talvez intuísse o que lhe competia fazer – colaborar activamente na reconstrução de uma frente do centro-direita e da direita – mas é capaz de já não ser capaz. Em vez disso tem-se (aparentemente) entretido a pulverizar esse grande espaço à direita do PS. Como podia então uma mera entrevista substituir subitamente por outra uma personalidade tão marcada e a viver hoje semelhante momento? Ou sequer diluir um modo de agir tão exclusivo, um procedimento presidencial tão sui generis, uns comportamentos tão antigos como ele próprio ?
Marcelo é ele, apesar da sua circunstância.
3 Seja como for, era parca a minha vontade televisiva e modesta a curiosidade.
No final da sua entrevista, nenhuma delas se alterou. Apesar de tudo estranhei – e muito a vim a discutir depois – a solicitude enternecida com que logo “se” acolheu a possibilidade de um “novo” Marcelo (santo Deus!); ou com que logo se tomou por definitiva a severidade para com governo (o PR não fez mais que os serviços mínimos face a um executivo em decomposição e um país às arrecuas porque sabe – não o dizendo, claro – que pouco mais pode fazer). O que já fez – a convocação das últimas eleições – não correu bem. Tudo menos um segundo problema político e agora que o seu consulado irá começar a entrar em contagem decrescente.
Em resumo: foi previsível e antecipável mas a natureza humana precisa de acreditar no que quer. Na sua entrevista o Presidente da República foi o muito activo proporcionador desse acto de fé. Parece que os portugueses acreditaram. É com certeza melhor assim, mesmo que sirva para pouco.
PS 1 – Estranhei o modusfaciendi das alusões a Fernando Medina. Que era aquilo? Aviso à navegação socialista? Pré aviso pessoal? A sombra, mesmo que vaga, indefinida e sem prazo marcado, de algo parecido com uma sombra de chantagem?
PS 2 – Estranhei a persistência do diálogo – sempre variado – do Presidente da República com a Igreja através da media.
4 Admito sem relutância que tudo isto que escrevo seja uma questão de grau e que o meu surja como demasiado áspero. É uma mera questão de análise e observação, não é de hoje e não se confunde com o resto, que é muito e dura há décadas. Não estou a ser contraditória, estou a traduzir em palavras a radiografia que fiz de um determinado momento presidencial. Outros anos e momentos virão. Não tem grande importância. E as coisas são o que são.
* “Salazar e a Educação no Estado Novo”, de Eduardo Marçal Grilo, ex-ministro da Educação do PS (Bertrand). Uma boa achega – devia haver muitas mais – para nos conhecermos melhor. Para concordar, discordar, aprender, comparar. Perfis, personalidades, estilos, políticas, épocas.