Marcelo Rebelo de Sousa pode ser acusado de ter cometido muitos erros ao longo dos quase nove anos que leva como Presidente da República — e cometeu seguramente. Uma extensa lista. Desta vez, no entanto, ninguém lhe pode apontar dois pecados: o da omissão e o da incoerência. Ao fazer saber, com clareza, que dissolverá a Assembleia da República em caso de chumbo orçamental, o Presidente da República esvazia uma parte do teatro que tem sido alimentado ao longo dos últimos penosos meses. E ao propor-se a decidir como decidiu em 2021, concorde-se ou não, Marcelo não pode ser acusado de ter dois pesos e duas medidas. Doa a quem doer.

De resto, não deixa de ser irónico ver tanta gente no universo socialista ou próxima de Pedro Nuno Santos a acusar Marcelo Rebelo de Sousa de estar a cercar o PS com este ultimato. Em 2021, foram poucos os socialistas que se comoveram com o mesmíssimo ultimato de Marcelo Rebelo de Sousa à esquerda parlamentar. Mesmo perante as queixas legítimas de bloquistas e comunistas de que o Presidente da República estava a dar todos os argumentos ao PS para não ceder nas negociações, Marcelo não recuou. E todos sabemos como acabou esse filme: Bloco e PCP dinamitados, Rui Rio copiosamente derrotado e apeado da liderança do PSD e António Costa com uma generosa maioria absoluta — que depois desbaratou, é certo, mas isso é outra história.

De forma algo comovente, muitos socialistas dizem agora que, há três anos, não desejavam verdadeiramente uma crise política e que a maioria absoluta não constava dos planos. Acredita quem quiser, naturalmente, mas ninguém pode dizer, com seriedade, que aquela vitória não se deveu, em grande medida, ao esvaziamento eleitoral de Bloco e PCP, profundamente penalizados por terem contribuído para a crise política, e ao fantasma da alegada proto-aliança entre Rui Rio e André Ventura. Por outras palavras: o ultimato de Marcelo em 2021 deu um jeitaço ao PS; agora é um cerco inaceitável. Algo não bate certo.

Depois, existe os que distinguem os dois momentos. Agora, dizem-nos, não há qualquer garantia de que umas eleições antecipadas venham a clarificar o que quer que seja e que Marcelo Rebelo de Sousa só estará a juntar instabilidade à instabilidade. Pode ser que aconteça — até é provável que aconteça. Mas também esse argumento tem as suas fragilidades: em 2022, a uma semana das eleições, António Costa e Rui Rio estavam, segundo as sondagens, empatados tecnicamente e o PSD chegou a sonhar efetivamente com a vitória; a 31 de janeiro, todavia, o país acordou com uma maioria absoluta do PS e a promessa de quatro anos de grande estabilidade. Logo, ninguém consegue antecipar com rigor como se comportará o eleitorado em caso de nova crise política.

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Sem qualquer ironia, percebe-se que o PS não queira ser empurrado contra a parede. Até se percebe que se queixem da pressão de Marcelo Rebelo de Sousa e até de uma obsessão mediática sobre o sentido de voto dos socialistas no Orçamento do Estado, como se Pedro Nuno Santos estivesse obrigado a dar mão, acriticamente, a Luís Montenegro. Há até quem se queixe de que Marcelo, ao estar sempre a lembrar que viabilizou três Orçamentos de António Guterres quando era líder do PSD, está a dar um passo inaceitável. Pormenor: Marcelo Rebelo Sousa fez exatamente o mesmo com Rui Rio — que se queixava, precisamente, de estar a ser pressionado.

Ou seja, mais uma vez, o Presidente da República está a ser profundamente coerente com o que fez no passado. No limite, até se pode dizer que Marcelo Rebelo de Sousa esteve mal em 2021 e que está mal em 2024. É perfeitamente válido e legítimo. O que não se pode dizer é que esteja a fazer diferente do que fez no passado. Num caso, ajudou a narrativa de vitimização do PS; agora, está a ajudar a narrativa de vitimização da Aliança Democrática. É da vida.

A clareza de Marcelo teve outra virtude: acabaram-se as cenarizações sobre o que acontecerá se existir um chumbo. As teses eram tantas quantas a imaginação conseguia alcançar. O Orçamento chumbava? Antes ou depois da discussão na generalidade? Mas vinha logo um retificativo? Montenegro demitia-se ou não? Ficava em duodécimos? Marcelo convidava outro a formar governo ou exigia eleições? Longos meses depois, essa conversa acabou. Todos os que queiram negociar este Orçamento têm de saber o preço a pagar se este for chumbado. Marcelo enterrou essa conversa e isso trouxe um fator importante para a discussão: responsabilidade.

Ninguém poderá dizer que não está avisado. Luís Montenegro, se está verdadeiramente empenhado em salvar Orçamento do Estado como tem jurado recorrentemente, deve parar de provocar o suposto parceiro preferencial. Pedro Nuno Santos, se quer evitar ir a votos, deve deixar de sonhar com retificativos, duodécimos e linhas vermelhas. Os dois devem parar com o escalar da tensão e com as trocas bizarras de comunicados. E André Ventura tem de decidir se o chumbo é mesmo totalmente irrevogável ou condicionalmente irrevogável, uma nova e exótica modalidade. Ou está dentro, ou está fora.

Marcelo Rebelo de Sousa, tantas vezes acusado de se ser viciado no lado lúdico da política, exigiu aos adultos na sala que se comportassem como tal e que se deixassem de jogos de sombras e de encenações. O recado foi curto e grosso: o tempo dos cálculos políticos acabou; o momento de negociar e de assumir responsabilidades é este. Goste-se ou não, ninguém se poderá queixar de ter ido a jogo sem conhecer todas as cartas da mesa.