O presidente Marcelo Rebelo de Sousa foi ao Brasil e está previsto lá voltar num ano rico em aniversários nas relações luso-brasileiras. A viagem gerou polémica com ajuda inestimável de Jair Bolsonaro e da hiperpolarização da política brasileira. Em que estado estão as relações de Portugal com o Brasil num ano repleto de aniversários?

A raiz do problema

Tudo começa com a independência do Brasil em 1822 e este é o ano do seu bicentenário. Foi uma independência paradoxal, o conflito armado foi mínimo e a continuidade foi máxima ao nível de elites. Até 1889 o Brasil continuou a ser uma monarquia com um ramo dos Braganças na chefia do Estado. Mas isto não significa que as relações luso-brasileiras tenham sido sempre fáceis ou frutíferas. Nas antigas colónias o novo nacionalismo frequentemente tem como uma das suas componentes a rejeição do anterior poder colonial. Claro que é legítimo aos brasileiros criticar o colonialismo português. No entanto, aquelas elites brasileiras que continuem a insistir que o grande problema do Brasil hoje é o colonialismo português devem perceber que estão sobretudo a criticar-se a si próprias e à sua, aparente, incapacidade de mudar fundamentalmente o país nestes dois séculos.

Este é também o centenário da primeira travessia aérea do Atlântico Sul por Sacadura Cabral e Gago Coutinho. Um bom exemplo da utilização de meios militares como instrumento diplomático visando a promoção no Brasil de uma imagem de Portugal como um país moderno cujos feitos não estavam apenas no passado. Já em 1922 havia quem estivesse ciente de que mesmo entre os brasileiros com simpatia por Portugal havia muitas vezes uma imagem de um país glorioso no passado, mas irrelevante no presente. Infelizmente, o avião que fez a travessia não era aquele que partiu de Lisboa e também não era português.

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Apesar de tudo, hoje, Portugal e Brasil podem apresentar o novo avião de transporte militar KC-390 como prova de algo concreto e inovador nas relações luso-brasileiras. Desenvolvido pela Embraer, que, apesar de alguns percalços, continua a ser uma empresa brasileira de referência na indústria aeronáutica global, parte do KC-390 foi concebido por engenheiros portugueses e é fabricada por cá. Veremos se é um sucesso, mas dá resposta no domínio vital da projeção de forças e meios em que há grandes deficits, desde logo em Portugal. Ao nível do relacionamento económico o potencial existe, mas há grandes obstáculos, desde logo burocráticos. Por isso, é importante que o acordo comercial entre o Mercosul – a organização económica regional de que o Brasil faz parte – e a União Europeia seja ratificado e implementado. Bolsonaro não tem ajudado, pelo que uma mudança ao nível da presidência brasileira poderá contribuir para vencer a resistência de países europeus menos entusiastas de um acordo que ameaça os seus interesses agrícolas. Portugal têm-se batido por ele e deve continuar a fazê-lo, pois seria dos países potencialmente mais beneficiados.

Visitas a mais?

Este é também o centenário da primeira visita de um Chefe de Estado português ao Brasil independente. Em 1922, o Presidente António José de Almeida foi acolhido de forma apoteótica. Na verdade, tinha sido preparada uma visita do Rei D. Carlos para Maio de 1908, mas o seu assassinato, compreensivelmente, levou à anulação da viagem em que ele muito se empenhara. Para D. Carlos o Brasil, grande destino da emigração portuguesa e único Estado de língua portuguesa na época além do nosso, era uma das três prioridades de longo prazo na política externa portuguesa. Essa preocupação com não afrontar o Brasil levou-o até a evitar receber o príncipe D. Luís, seu primo brasileiro, neto exilado do último imperador do Brasil, que passou por Lisboa em 1907. Deveria Marcelo Rebelo de Sousa ter seguido esse exemplo de prudência em 2022?

O normal, quando um Presidente visita um país, é avistar-se com o seu homólogo. Mas Marcelo não é um presidente normal. E Bolsonaro não tem uma política externa convencional. Também não se deu ao trabalho de visitar Portugal nas suas vindas à Europa. Nas páginas da imprensa de referência brasileira a reação à opção de Marcelo não foi, em geral, negativa. O caso foi visto como mais um exemplo da visão de Bolsonaro da política externa como mera continuação das suas guerras de política interna, bem como do seu crescente descrédito internacional. É o que afirma o meu amigo Matias Alencastro na sua coluna na Folha de São Paulo. Até critica Marcelo, mas por parecer ignorar nas suas frequentes visitas as comunidades negras e nativas que tanto pesaram na presença portuguesa no país.

Imagino que o experiente embaixador português em Brasília tenha alertado para os riscos desta viagem presidencial num clima de extrema polarização por causa das eleições presidenciais de Outubro. Tratou-se de uma opção política pouco convencional e arriscada, mas a nossa política externa tem por vezes pecado por excessiva prudência. Esta viagem presidencial não era indispensável – já ia o ministro da Cultura – mas a de Setembro, sendo mais arriscada, seria mais difícil de evitar. Corre-se o risco de Bolsonaro voltar a criar dificuldades? Sim. Estas viagens presidenciais estão a tornar-se uma aposta cada vez mais arriscada, mas é o bicentenário da independência brasileira e se Marcelo se encontrar com Bolsonaro dificilmente poderá ser acusado de parcialidade. Será uma aposta ganha, sobretudo se Lula vencer, como as sondagens preveem. Tendo ido, Marcelo fez bem em desvalorizar o destrato protocolar.

Uma relação resiliente

Marcelo fez bem, sobretudo, em afirmar que a relação luso-brasileira está para lá dos regimes e dos governos. Ela tem problemas, limitações e é estruturalmente assimétrica, mas é mais resiliente e intensa do que as que o Brasil mantém com qualquer outro país semelhante a Portugal nas dimensões, na distância ou no peso económico. E essa é a comparação que faz sentido fazer. A proximidade histórica, cultural e linguística é uma mais-valia, mas não resolve tudo e não dispensa ser devidamente cultivada. Esta viagem sinalizou a importância da língua portuguesa e das relações culturais com o Brasil, esperemos que a prática ao nível de investimento futuro corresponda às palavras.