É obra Marcelo Rebelo de Sousa ter conseguido irritar e minar, ao mesmo tempo, o líder do governo e o líder do principal partido da oposição. Não me parece realista, no entanto, pedir-lhe que se torne – com esta idade e reeleito para a chefia do Estado – alguém que nunca foi ao longo de toda a sua vida: um homem discreto e um político que mantém a imprensa à distância. Nada na sua personalidade, no seu estilo e no seu percurso o aproxima dos seus antecessores imediatos: Cavaco Silva e Jorge Sampaio. Ele é a encarnação da política como espetáculo mediático. Mas é legítimo perguntar quais são as implicações deste presidente-espetáculo reeleito pela maioria dos portugueses? Será que Marcelo é um presidente sem precedentes? Que legado deixará?

O político-espetáculo por excelência

Não vejo que Marcelo se vá calar porque comentadores “da elite” não gostam de o ouvir falar tanto de minudências. Marcelo sempre viveu a política como uma realidade essencialmente mediática. Ninguém melhor do que ele encarna a proximidade, por vezes excessiva, entre media e política no Portugal pós-1974. Toda a vida de Marcelo é alimentada pela exposição político-mediática. A base da sua ressurreição política e da sua candidatura presidencial foi o comentário político-mediático. Tudo ou quase tudo pode acontecer em política. Mas alguém considera provável que Marcelo, o “inventor” do “facto político”, deixe de os criar a gosto?

Qual é o problema? Um colega do atual presidente na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa contava que como presente de despedida, antes de ir para Belém, Marcelo se teria entretido a encorajar uma série de candidaturas à liderança dessa escola de juristas e políticos pelo prazer de ver “o circo pegar fogo”. Há um lado de jogo na política que está muito presente em Marcelo, mas também há quem o associe a um lado incendiário, que o tornaria politicamente perigoso. Sobretudo quando vivemos numa Mundo cada vez mais perigoso, e numa Europa que vai de crise em crise a caminho, quiçá, de uma crescente ingovernabilidade.

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Marcelo no centro da tempestade

É certo que ele tinha um problema político fundamental neste ano. Como manter-se relevante? Como mostrar que a presidência continua a ser central num contexto de maioria absoluta de um só partido? A aposta foi ficar ainda mais no centro da vida mediática, com regulares banhos de multidão, abundantes selfies e frequentes comentários que a maioria da população parece apreciar. E fazer mais frente ao governo de António Costa e à sua maioria absoluta, em linha com a tradição, na política portuguesa, de ter na presidência um contrapeso em períodos de maioria absoluta. Não se pode dizer que o presidente tenha falhado neste objetivo de afirmar a sua centralidade, ajudado por vários casos e “casinhos”. Na política, no entanto, pode ser-se demasiado bem-sucedido. Veja-se António Costa e as dificuldades que está a ter em gerir bem uma maioria absoluta que ninguém esperava.

Se Marcelo não conseguir disciplinar um pouco mais as suas múltiplas aparições e comentários arrisca transformar-se num buraco negro político-mediático que suga o brilho dos outros atores, em particular do primeiro-ministro e do líder do PSD. Com isso virão mais críticas. Sobretudo, pode ajudar a minar o atual governo, para o qual o próprio Marcelo diz que não vê alternativa. E não haverá, em parte, porque, ao mesmo tempo, Marcelo também mina a liderança do principal partido da oposição, que implicitamente acusa de ineficácia.

Que legado?

Marcelo arrisca-se a ser o promotor de eleições antecipadas que, para já, não parece querer. Provavelmente porque sabe que delas poderá sair um parlamento mais fragmentando, um PS e PSD mais enfraquecidos, extremos mais reforçados, e um país com mais dificuldades em formar uma coligação estável de direita ou de esquerda.

Marcelo, tal como António Costa, parece sobretudo um tático. Poderia dizer como George H. Bush: “I don’t do the vision thing.” Apesar de toda a sua capacidade de comunicação, a verdade é que ele não surge facilmente associado a nenhuma grande visão para Portugal – como Soares com o seu europeísmo, Cavaco com o seu desenvolvimentismo, ou Sampaio com o seu humanismo progressista. Mas é uma boa altura para começar a pensar nisso, pois, queira ou não queira, algum legado histórico ficará destes seus anos em Belém. Mesmo em termos de política partidária os seus antecessores – Soares, Sampaio, Cavaco – puderam terminar os seus mandatos com a ideia de que ajudaram os seus partidos, o seu campo ideológico a regressar ao poder.

Marcelo arrisca-se a ser associado a um regime democrático fragilizado pelo crescimento dos extremos e a um país, se não ingovernável, pelo menos mais difícil de governar.

Se não quiser deixar esse legado, o que deve fazer? Falar menos, produzir menos notícias seria provavelmente pedir o impossível. Serei, talvez, dos poucos que acha que não seria mau se falasse mais de futebol, ou seja, de temas não muito sérios. O norte-americano Lincoln era um mestre nessa arte de falar sem dizer nada. Mas também poderá falar mais sobre temas mais sérios e estratégicos, da importância de um novo aeroporto até mais investimento em defesa. Fundamental para a sua missão central de garantir a estabilidade das instituições democráticas seria contribuir ativamente para retirar algum do veneno populista que ameaça deslegitimar todo o sistema político, com suficiente arte para dar margem a que surjam alternativas de dentro do sistema partidário.

Da última vez que chefes de Estados tiveram tanto protagonismo e centralidade no sistema político-mediático português acabaram mal e o regime com eles, estou a falar de D. Carlos e Sidónio Pais. O sistema político português está, hoje, muito mais consolidado do que nesses períodos. A violência política é, hoje, felizmente, inexistente. Mas convém não ser complacente. Os regimes são estáveis até deixarem de o ser. E o acumular de crises económico-financeiras, sanitárias e geopolíticas costuma produzir forte desgaste em pequenas potências muito abertas ao exterior como é o caso de Portugal.