O cerco
No início da década de 2000, Fátima Felgueiras era uma autarca com créditos firmados no concelho com o mesmo nome. Após um processo atribulado e muito noticiado, a autarca regressa a Portugal em Setembro de 2005, vinda do Brasil, para onde tinha fugido no âmbito do processo crime em que era acusada e que se arrastava desde 2003. Escassos meses depois, é eleita Presidente da Câmara Municipal de Felgueiras, encabeçando um movimento independente. A história desta eleição é complexa, como é natural, mas há um ponto que ressalta: muitos Felgueirenses sentiram os ataques que todo o país disparava como feitos sobre eles enquanto comunidade e reagiram a isso. A reacção dos Felgueirenses, uma reacção de cerco que apela a cerrar fileiras, é normal. O que se lia, à data, na imprensa, caracterizava o concelho como uma comunidade sem valores que acolhia uma “corrupta”. Obviamente, Felgueiras não era nem é isso. Os Felgueirenses são uma comunidade decente, de trabalho e cujo nível de escolaridade não difere dos vizinhos. O anátema que se lançou a nível nacional sobre os Felgueirenses teve o efeito eleitoral oposto ao desejado por quem o lançou.
Os fascistas e a simplificação
Após uma campanha eleitoral acesa, a maioria dos portugueses não sabe ainda hoje o que André Ventura pensa sobre a pandemia, sobre a dívida pública ou sobre as prioridades nacionais para a bazuca europeia. Sabe, porém, que é um fascista xenófobo, que os seus apoiantes são todos fascistas e que o baton vermelho é um movimento contra ele. Um movimento inclusivo e sustentável, decerto.
Durante meses, e mais intensamente nas últimas semanas, Ventura foi caracterizado na opinião pública desta forma muito simples, unidimensional: “O facho”. E não foram só os jovens do Bloco que o perseguiam nos actos de campanha. Foi gente das mais diversas áreas da política, economia e sociedade, a quem foi dada voz para dizerem o mesmo: “Ah aquele fascista”.
Em conclusão
André Ventura não é um orador excepcional, não tem um programa económico com a consistência do Vox e não se lhe conhece uma equipa com nomes de referência. É certo que soube identificar de forma muito rigorosa alguns pontos de descontentamento e de exclusão na sociedade e dirigir-se a eles. Porém, não foi isso o que sempre fez o Bloco? André Ventura tem, além disso, em seu desfavor a derrota eleitoral de Trump, com o qual é frequentemente comparado. Com o qual ele próprio se comparou, aliás.
Teve, porém, dois factores fabulosos que lhe abriram caminho a milhares de votos, votos, aliás, que vão muito para além do protesto e que se vão rever em futuros actos eleitorais.
O primeiro é o mencionado no exemplo de Felgueiras: a reacção de cerco. Ao apelidar Ventura e todos os que simpatizam com ele de fascistas, isso gera uma contra-reacção de grupo, cerrando fileiras. Sempre que um eleitor se via a concordar com algo óbvio que ele dissesse, por exemplo, o combate à corrupção (que é uma matéria comum a vários candidatos), a reacção seguinte era: “Mas concordar com o Ventura no combate à corrupção faz de mim fascista?” De cada vez que os telejornais faziam reportagens da campanha de Ventura, que eram efectivamente reportagens sobre as manifestações contra Ventura ou focando o jantar que ele fez não sei onde, isso alimentou a reacção “eh, pá… não largam o homem”. Quantos votos terá Ventura ganho à custa das sucessivas peças da SIC, ora no Jornal da Noite, ora num especial de investigação? E perguntava-se: “Mas onde está a reportagem sobre as ligações de Marcelo com Ricardo Salgado?” A certa altura, os dossiers sobre o Chega e Ventura já eram tantos, que não havia pachorra para os ler. Para os opositores de Ventura não valia a pena ler, pois repetiam todos os males de que ele já vinha acusado; para os apoiantes não valia a pena ler, pois fazia tudo parte de uma cabala. Tudo isto reforçou a vitimização e a reacção de cerco, ambos garantindo votos. Esta táctica de etiquetar lembra o famoso episódio do Primeiro-Ministro Almirante Pinheiro de Azevedo quando, em 1975, já farto de ser apelidado de fascista, afirmou em voz alta para a RTP e as rádios à porta de S. Bento: “Bardamerda para o fascista”.
O segundo decorre da forma como se simplificou o debate e assim se facilitou a campanha de Ventura. É que, se Ventura fosse questionado sobre as opções políticas com as quais o país e o Estado português se confrontam, tinha-se percebido que não tinha nada de especial a dizer. O que pensa sobre a gestão da pandemia? Nada de especial. Apoia a injecção de quatro mil milhões de euros na TAP? Tinha perdido votos à direita. O que pensa sobre a política educativa? Ninguém sabe. Ao lado da IL, por exemplo, o Chega tem um programa económico de uma magreza notória. Era aqui, ao debate das matérias de política, que se deveria ter chamado André Ventura, como aliás todos os candidatos. Mas não. Numa atitude de total ingenuidade, a esquerda, levando a reboque muita comunicação social acrítica, achou que o caminho mais simples era etiquetar Ventura de fascista, xenófobo e aquele triste teatro do baton. Ou seja, ilibaram Ventura de ir a jogo no campo que lhe era menos favorável – o do debate de políticas concretas. E insistiram, incessantemente nestas matérias simbólicas, as quais obviamente lhe deram centralidade e notoriedade: o antissistema. Ele, e só ele, é contra “o sistema”. Vale a pena rever a campanha e perceber como Marcelo nunca alinhou nesta dialéctica, político astuto que é, e astúcia à qual se deve um resultado eleitoral admirável.
Nota 1: para registo, em Maio de 2012, o Tribunal da Relação de Guimarães confirmou a absolvição de Fátima Felgueiras dos crimes de que estava acusada.
Nota 2: o abuso da palavra “fascista” pela esquerda radical e pelos ingénuos de serviço desvalorizou de tal modo o seu significado, que é um péssimo contributo para o conhecimento e condenação desse regime efectivamente negro da história humana.