A Itália terá um novo governo saído de eleições, provavelmente nos finais de Outubro. O que é que isso nos importa? Alguma coisa, quer estejamos a falar do futuro da União Europeia, de tendências futuras no sistema partidário do nosso continente, ou mesmo do futuro da ampla coligação de apoio à resistência da Ucrânia à invasão da Rússia.

É bom ter um governo saído diretamente de eleições

O último chefe do governo italiano a ser nomeado como resultado direto de eleições foi Berlusconi, em 2009. O último primeiro-ministro a demitir-se como resultado de um ato eleitoral foi Matteo Renzi que perdeu um referendo em 2016. É importante ter-se uma líder italiana que liderou o voto popular, isso é bom do ponto de vista da responsabilização, do escrutínio, da legitimidade de um governo numa democracia.

Continuo a ver Mario Draghi como um dos melhores líderes europeus do período da crise de 2011 em diante. Foi fundamental na resposta à crise do euro como Presidente do Banco Central Europeu, e, agora, como chefe do governo italiano foi fundamental na elaboração da estratégia de sanções contra a Rússia. Há, no entanto, uma qualidade política fundamental que faltou sempre a Draghi – nunca foi escolhido pelo eleitorado. Há várias razões para o sucesso dos Irmãos de Itália, que passou de 4% dos votos em 2018, para partido mais votado, com 26%, em 2022. Mas uma parte importante desse sucesso tem de ser atribuído ao facto de Giorgia Meloni ter liderado o único partido em oposição aberta ao governo tecnocrático de Draghi.

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Há problemas com a vencedora destas eleições e provável líder do novo governo italiano? Há. Meloni tem pouca experiência governativa e vai enfrentar um dos momentos mais difíceis da Europa pós-1945. Pior, começou a sua vida política na juventude do Movimento Social Italiano, herdeiro declarado do fascismo de Mussolini na Itália pós-1945. Meloni diz que já não se revê nesse passado, mas nunca se distanciou dele de forma inequívoca. Este facto, e a sua proximidade com Viktor Órban, que rapidamente a parabenizou pela sua vitória, justificam dúvidas sobre o seu grau de compromisso com um regime democrático pluralista.

Dito isto, o fascismo não está de volta a Itália. Independente das desconfianças que se possa ter de Meloni, o seu partido ficou longe da maioria absoluta. E o Presidente Matarella, que terá uma palavra importante na formação do governo, é um centrista. Se Meloni for chefe do governo terá de mostrar que as suas propostas são exequíveis e que tem a capacidade de as implementar. Se não conseguir concretizar o seu programa – gerindo uma complicada coligação com a Liga e a Força Itália – os eleitores poderão puni-la.

De onde vem a Itália

A Itália tem um papel central na civilização europeia há 2500 anos. Mas como Estado unificado é uma realidade mais recente. Desde a queda do Império Romano até a meados do século XIX a regra foi a fragmentação política de uma Península Italiana geograficamente muito fragmentada. Em meados do século XIX coexistiam em Itália sete Estados. O Reino de Itália só foi criado em 1861, na sequência de uma série de campanhas militares. Roma só foi incorporada no Estado italiano em 1871. Trieste e Trento só passaram a ser italianos depois da Primeira Guerra Mundial, e só a Segunda Guerra Mundial lhe fixou as fronteiras atuais. Ainda hoje há enormes divisões desde a gastronomia até à economia entre as suas regiões, e especiais contrastes entre o Norte e o Sul. Nesta eleição, apesar dos Irmãos de Itália de Meloni vencerem em grande parte do território, o principal partido de centro-esquerda, o Partido Democrático, venceu em cidades como Florença e Bolonha, e o movimento populista Cinco Estrelas teve bons resultados no Sul.

A Itália também se tem caracterizado por grandes mudanças formais que não alteram um fundo de profunda inércia. É um fenómeno real expresso na famosa máxima – “é preciso que algo mude, para que tudo fique na mesma” – do ficcional Príncipe de Lampedusa na obra clássica, O Leopardo. A Itália é, portanto, um Estado com muitos problemas, difícil de governar e de reformar, sendo detentor da maior dívida da União Europeia em termos de peso na economia, mais de 150% do PIB. Também é um país magnífico, com uma grande riqueza cultural e imenso potencial económico – do turismo até à cerâmica, passando pela moda. É isso que explica que seja a terceira maior economia da União Europeia.

Para onde vai a Itália

Apesar de ser por vezes um Estado problemático, ou até por causa disso, a Itália tem sido muito importante na política europeia contemporânea. Foi o berço do fascismo, que tomou o poder no país há precisamente um século, em 1922, tendo um poderoso efeito de contágio em parte importante da direita europeia mais radical. Foi um teatro central da Segunda Guerra Mundial no Mediterrâneo. Foi o único Estado fundador da NATO, em 1949, que não estava geograficamente no espaço Atlântico. O que diz bem da sua relevância geoestratégica na Guerra Fria. Ter o Partido Comunista mais forte da Europa Ocidental tornou a Itália vital na contenção do bloco soviético. O que ajuda a explicar a tentativa de reformulação eurocomunista do PCI, e a hegemonia do partido da Democracia Cristã, que teve um papel dominante em todas as coligações de governo de 1946 até 1994, e foi um pilar deste movimento a nível europeu. A Itália foi um dos motores do processo de integração europeia que teve como marco fundamental o Tratado assinado em Roma em 1957. (Aliás, apoiou fortemente a adesão de Portugal.) Itália foi ainda, por via do escândalo Mãos Limpas, um dos países pioneiros da fragmentação e reconfiguração da política europeia, bem como da ascensão global de líderes populistas como Berlusconi.

O que podemos esperar desta nova fase da política italiana? Francamente não sei. Creio que ninguém sabe com segurança, é demasiado cedo. Falta, por exemplo, perceber se a moderação recente de Meloni é mera estratégia eleitoral ou uma certa viragem ao centro. Um teste de fogo vem já aí, com a gestão económica da guerra de Putin. Meloni deu sinais mais fortes de compromisso com a NATO e a coligação anti-Putin do que com UE. Veremos até que ponto Meloni vai tentar comprar espaço de manobra internamente cedendo nalguns aspetos da dimensão externa. É provável que o faça, e que o faça mais no que diz respeito à NATO/EUA do que relativamente à UE. Há ainda a questão de saber se irá liderar uma vaga reforçada da direita radical europeia. Isso parece mais difícil, pois estes movimentos estão a crescer, é certo, mas são muito nacionalistas por natureza e pouco inclinados ao compromisso, e, por isso, difíceis de coligar – veja-se o choque recente entre o governo polaco e húngaro. Claro que se um governo Meloni durar a média dos governos italianos desde 1946, de pouco mais de ano, a sua influência será limitada. A Itália é a pátria de Maquiavel, e tem muitos séculos de experiência em intrigas de bastidores e golpes palacianos. Meloni já mostrou, porém, que não a devemos subestimar.