A janela tem tido uma participação frequente e não despicienda na história de Portugal. Mais até do que a porta, presente em episódios fulcrais como a tomada de Lisboa aos mouros (Martim Moniz entalou-se numa) ou a fuga da família real para o Brasil (D. João VI era burro como uma), a janela é o elemento arquitectónico por excelência da portugalidade. Foi numa janela do Paço Real que, depois de fazer a folha ao Conde Andeiro, o Mestre de Aviz se mostrou ao povo para inflamar os ânimos e incitar o levantamento popular que o iria conduzir ao trono. Duma janela do mesmo edifício, em 1640, os conjurados atiraram o traidor Miguel de Vasconcelos, precipitando o fim do domínio espanhol. Noutra janela da Baixa de Lisboa foi proclamada a República. E, mais recentemente, foi numa polémica marquise que Cavaco Silva apareceu a primeira vez depois de ter sido eleito Presidente.
Portanto, era uma questão de tempo até André Ventura, que ambiciona tornar-se numa das figuras cimeiras da mitologia lusitana, arranjar uma forma de aparecer nas notícias juntamente com uma janela. Conseguiu-o na sexta-feira passada, quando pendurou tarjas em parapeitos do Palácio de São Bento. Ventura aproveitou uma rubrica do orçamento do Estado para fazer uma demonstração de força política. O fim de cortes salariais do tempo da troïka seria, para Ventura, o que a independência nacional foi para o Mestre de Avis. O acontecimento que o ia tornar num herói português, a acenar para o povo que o vitoriava lá em baixo.
Desafortunadamente, não basta estar à janela com um pano, como uma velhinha que pendura a sua colcha durante a procissão. É preciso alguma audácia para levar essa intenção avante. Além de se mostrar à janela, o Mestre lutou contra os castelhanos e tornou-se D. João I; os conjurados também pegaram em armas; os republicanos instituíram um regime com canhões; e até Cavaco teve a valentia de resistir a todos quantos gozavam com a saloiice de fechar a varanda com recurso a uma pirosa estrutura de alumínio. A André Ventura faltou essa coragem: mal ordenaram que retirasse os cartazes, o presidente do Chega fez voz grossa mas cedeu e recolheu os posters das balaustradas. Os republicanos resistiram a tiros, Ventura acagaçou-se ao primeiro “tira!”. Onde estaria agora o nosso país se fosse esta a fibra dos líderes que se mostram à janelas? Afinal, as mensagens na fachada eram mensagens de fachada.
Ventura abdicou do combate político à primeira contrariedade. Já não é o lutador aguerrido que, na CMTV, não se calava e repetia “é penalti, sim senhor!” até ao fim do programa. Ventura está irreconhecível, uma sombra daquele comentador atrevido. Em vez disso, deu ontem uma tíbia conferência de imprensa a lamuriar-se por ter sido alvo de denúncias por vandalismo. Que político intrépido é este? É como se os conjurados se viessem queixar por terem sido acusados de deitar lixo para o chão.
Das duas, uma: ou Ventura é o destemido homem providencial que desafia as convenções e mantém os seus cartazes marotos; ou tem miúfa e é um político que obedece à lei. Se quer ser um deputado como os outros, não é por ter chegado há pouco tempo à AR que está dispensado de cumprir as regras, costumes e tradições locais, por mais que choquem com os usos do seu lugar de origem. O parlamentarismo português recebe todos de braços abertos, desde que se integrem e respeitem a sua cultura e valores.
Só que Ventura considera que as críticas são um atentado à sua liberdade de expressão e que está a ser vítima de perseguição política. Julgo que André Ventura está a fazer confusão. Ninguém quer proibir o Chega de afirmar o que quer que seja sobre a reposição dos cortes. Pode dizer o que quiser, só não o pode fazer em cartazes pendurados nas janelas da Assembleia da República. A mensagem é livre, o meio depende. A diferença pode parecer subtil, mas existe. Por exemplo, no uso da minha liberdade de expressão, posso dizer à vontade que André Ventura é um borrinhas porque se acobardou. Coisa diferente, que já não me é permitido, é tatuá-lo na sua testa.