Miguel Sousa Tavares (MST) escreveu um artigo de ódio pessoal contra Durão Barroso na última edição do Expresso. A carreira política de Durão Barroso foi longa, seguramente com decisões polémicas, e qualquer pessoa tem o direito de o criticar e de discordar de muitas das suas posições. O que é inaceitável é atacá-lo com base em mentiras, sem a preocupação de estudar devidamente o que aconteceu e ignorando os factos. Pior do que tudo, para atacar Durão Barroso MST pôs em causa conquistas da diplomacia portuguesa, transformando-as em “derrotas” que só existem numa cabeça cega pela inveja pessoal. MST tem de resto o hábito de fazer afirmações categóricas que são falsas ou erradas. Mas quando se escreve em público não se pode escapar ao escrutínio.

Antes de entrar na substância do artigo, quero que fique registado que trabalhei com Durão Barroso em Bruxelas durante quase sete anos, e ficámos com uma relação de amizade e estima. Se é verdade que gosto de defender os meus amigos de acusações injustas, também acompanhei por razões profissionais algumas das questões levantadas por MST e acho que devo recordar os factos e a verdade, tão mal tratados por MST no seu artigo no Expresso.

Comecemos com a crítica de MST aos Acordos de Bicesse e ao processo de paz em Angola. Os Acordos de Bicesse foram uma vitória da diplomacia portuguesa e resultaram ainda nas primeiras eleições democráticas em Angola, reconhecidas como tal pelos observadores internacionais e pela ONU. Durão Barroso fez aquilo que um mediador deve fazer. Conseguiu, ao contrário de outros, sentar o MPLA e a Unita à mesma mesa, ajudando as partes da guerra civil angolana a assinar um tratado de paz. Para o fazer, o seu interlocutor inicial teria que ser naturalmente o governo de Angola, reconhecido diplomaticamente por todos os países do mundo, incluindo os nossos parceiros europeus.

O líder da Unita não aceitou a derrota eleitoral e a guerra civil voltou a Angola. Mas é preciso muita má vontade para culpar Durão Barroso por isso. Aliás, MST deve ser a única pessoa que o faz. O que MST nunca faz é propor uma alternativa aos Acordos de Bicesse. Deveria Portugal nada fazer pela paz e aceitar a guerra civil? Ou deveria Portugal permitir que outro país europeu liderasse a mediação entre as partes em conflito? Ou deveria o Estado português apoiar a Unita contra o governo legal de Angola?

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Convém ainda salientar que as negociações para os Acordos de Bicesse, ao aprofundarem as relações bilaterais com Angola, contribuíram para o início de reuniões multilaterais entre Portugal e os cinco países africanos de língua portuguesa – o processo 5+1 – os quais até então se tinham recusado a realizar reuniões conjuntas com Portugal. Podemos mesmo argumentar que o processo 5+1, iniciado por Durão Barroso, foi o embrião do que mais tarde seria a CPLP.

Passemos agora a Timor Leste. MST culpa Durão Barroso por ter aceite a ocupação de Timor Leste pela Indonésia. Isto é absolutamente delirante. Nada poderia ser mais falso e os timorenses bem o sabem. Aliás, nas suas memórias, o antigo MNE indonésio, Ali Alatas, reconhece que Durão Barroso foi um dos seus principais adversários. Quando Durão Barroso se tornou MNE, em 1992, além de Portugal, a Irlanda era o único país da União Europeia que apoiava a independência de Timor. A partir daí, Portugal fez um esforço diplomático para criar as condições para os parceiros europeus apoiarem os direitos humanos a depois a independência de Timor Leste.

Foi com Durão Barroso que se realizaram as primeiras rondas de negociações entre os MNEs de Portugal e da Indonésia, e com o patrocínio do então secretário-geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali. Pela primeira vez a Indonésia reconhecia que Timor Leste não era apenas um problema interno. No plano europeu, Portugal passou a fazer sempre declarações em defesa dos direitos humanos em Timor Leste nas reuniões ministeriais entre a UE e a ASEAN, contra a vontade dos grandes países europeus, sobretudo da Alemanha e do Reino Unido.

Mais: foi por iniciativa de Durão Barroso que Portugal propôs o Prémio Nobel para uma personalidade de Timor Leste, o que veio a acontecer em 1996 (quando Ramos Horta e Ximenes Belo ganharam o prémio Nobel da Paz) dando uma enorme visibilidade à questão de Timor. A carta com a proposta foi assinada por Durão Barroso. A verdade é indiscutível: em 1995, quando Durão Barroso saiu do MNE, o processo de Timor Leste estava muito mais avançado do que em 1985, quando o PSD chegou ao governo. Como reconhecimento do seu papel no processo de Timor Leste, Durão Barroso, na altura líder do PSD na oposição, foi convidado para as cerimónias da independência do novo país. Os timorenses não esquecem o que Durão Barroso fez para os ajudar.

Chegamos por fim à Cimeira das Lajes. MST garante que não havia armas de destruição maciça no Iraque. A Agência de Energia Atómica, a França e a Rússia na altura não diziam isso. Defendiam que as inspeções seriam a melhor maneira para impedir o Iraque de continuar a desenvolver armas de destruição maciça. Toda a gente sabia que o Iraque tinha armas químicas e que as tinha usado contra a sua população. MST gosta de viajar. Proponho que vá ao Curdistão e que tenha uma conversa sobre armas de destruição maciça com a população curda.

A Cimeira das Lajes também deve ser entendida no contexto da divisão entre países europeus que se opunham e apoiavam os Estados Unidos. Ao contrário do que afirma MST, a maioria dos países europeus estava ao lado dos Estados Unidos. Com a excepção da Alemanha, da Bélgica, da França, e do Luxemburgo, todos os outros países da União Europeia, incluindo os novos membros, que entrariam em 2004, estavam ao lado dos Estados Unidos. Por exemplo, Vaclav Havel, na altura Presidente da República Checa, e que não era seguramente um perigoso neoconservador, assinou a Carta dos Oito a apoiar os Estados Unidos. Do mesmo modo, Clinton e os democratas apoiaram Bush. Havia na altura um consenso forte nos Estados Unidos sobre o Iraque.

A Cimeira dos Açores foi uma decisão polémica, mas corajosa, e é inteiramente legítimo discordar e criticá-la. Mas foi consistente com a política externa atlanticista de Portugal desde o início da democracia. Além disso, a maioria dos países europeus partilhava a posição de Portugal.

De resto, o Presidente francês, Chirac, e o Chanceler alemão, Schroeder, interpretaram a Cimeira dos Açores à luz dos interesses nacionais de Portugal e mais tarde isso não os impediu de apoiarem Durão Barroso para Presidente da Comissão Europeia. Mais uma vez ao contrário do que MST diz, na altura Juncker não se candidatou a Presidente da Comissão Europeia porque não tinha o apoio da maioria dos Estados membros, e não por recusar o lugar, o qual ocupou depois de Durão Barroso. A verdade é que Durão Barroso foi até hoje o único político a ser votado duas vezes por maiorias no Parlamento Europeu para a Presidência da Comissão Europeia. Algumas qualidades terá.

MST faz ainda mais duas afirmações extraordinárias. Diz que Durão Barroso chegou “até onde os seus dotes jamais fariam prever de o terem feito.” Quem é MST para decidir quem possui os dotes necessários para o sucesso político? Durão Barroso foi eleito deputado várias vezes, líder do PSD, ganhou eleições legislativas, foi eleito duas vezes Presidente da Comissão Europeia. Como acha MST que isso aconteceu? Estavam todos, cidadãos portugueses, militantes do PSD e líderes europeus, enganados? Só MST é que está certo? Ou no fundo MST acha que os dotes adequados pertencem apenas aqueles dos meios que frequenta ou que gozam das suas preferências políticas?

Em segundo lugar, afirma que a militância no MRPP, entre os 18 e os 20 anos, mostra um “defeito de carácter.” Fico contente que MST com 20 anos já estivesse do lado da liberdade (só é pena que alguém que era moderado na sua juventude se tenha tornado agora tão radical.) Mas daí a confundir uma escolha ideológica, por mais que se discorde dela, com falhas de carácter vai um passo que ninguém deve dar. Há políticos com falhas de carácter em todas as famílias políticas, e há políticos com carácter que fazem escolhas ideológicas das quais discordamos, mas não devemos associar as duas. Por razões históricas, muitos políticos portugueses fizeram escolhas ideológicas na sua juventude das quais se arrependeram. Na sua geração, sobretudo em Lisboa, Durão Barroso fará mais parte da regra do que da excepção. Aliás, recordo a MST que um dos seus heróis políticos, Mário Soares, era militante do PCP bem depois dos seus 20 anos, e isso não o impediu de ter lutado mais tarde pela liberdade em Portugal. Ou será que MST também atribui a militância de Soares no PCP a uma falha de carácter?

MST sugere que a vida política de Durão Barroso merece “uma biografia à maneira anglo-saxónica, sem contemplações.” Deixo aqui uma sugestão a MST: poderia escrevê-la. Teria que ler, que aprender e ficaria seguramente menos ignorante. Podia até mudar um pouco a sua opinião sobre Durão Barroso. Nunca é tarde para aprender e mudar.